Cinema é revérbero do mundo à sua volta e, por isso, não é de se estranhar que a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo deste ano tenha uma ampla seleção de filmes que discutem as guerras e a violência no chamado Grande Oriente Médio.
Organizadores do maior evento cinematográfico do país cogitaram até mesmo furar uma seção para contemplar as obras de diretores vindos de países porquê Israel, Líbano, Síria, Afeganistão, Irã e Palestina, quase todos concentrados em narrar seus conflitos locais, por meio da ficção ou do documentário.
Para o júri, convidou ainda o cineasta iraniano Mohsen Makhmalbaf, atualmente no Brasil para seguir a programação. Ele apresenta, na seleção solene, os filmes “Falando com Rios” e “Cá as Crianças Não Brincam Juntas”, que dirigiu, e “A Lista”, documentário no qual é figura médio, com direção de sua filha, Hana Makhmalbaf.
“Quando eu vejo um filme, primeiro eu pergunto o que ele quer manifestar, e depois porquê ele diz isso”, diz Mohsen. “Cá as Crianças Não Brincam Juntas” foi filmado em Jerusalém, cidade metade isrelense e metade palestina por decisão da ONU, mas que hoje está sob totalidade controle de Israel. Mohsen mostra porquê os dois povos são impedidos de frequentarem os mesmos locais, porquê as escolas.
“Quando você lê as notícias, está vendo o lado político. Mas há também o lado cultural e social. Palestinos e judeus não se misturam porquê uma país, estão separados uns dos outros, e isso é o fator de geração do ódio”.
O cineasta lamenta o que labareda de um “escora incondicional” do oeste à Israel. “O Hamas fez um pouco horroroso, matou 1.200 judeus. Por vingança, Israel já matou 40 milénio palestinos. Esses filhos perderam seus pais, sua moradia, e em 20 anos estarão cheios de ódio. O traumatismo se repetirá.”
Já “Falando com Rios” explora um ponto mais íntimo para Mohsen, que em 2005 precisou deixar o Irã posteriormente ser ameaçado pelo regime. No longa, ele investiga as similaridades entre seu país e o Afeganistão, onde também morou por um período. Neste ano, Mohammad Rasoluf também precisou fugir do Irã para apresentar seu filme no Festival de Cannes.
“Quando você não é famoso, você pode fazer filmes de escondido. Mas basta ter reconhecimento para eles te colocarem na prisão”, diz Mohsen. “Antes da Revolução, tínhamos a ditadura. Depois, pensávamos estar no paraíso, mas chegamos ao inferno. Portanto começamos a fazer luz na negrume do Irã através da arte, principalmente no cinema.”
“A Lista”, dirigido por sua filha, Hana, apresenta um dos retratos mais crus dos conflitos em exibição nesta Mostra. Em suas primeiras cenas, uma turba de pessoas corre pelas ruas de Cabul, pouco posteriormente a retirada de tropas americanas do Afeganistão e da tomada de poder pelo Talibã. Seus gritos se mesclam a tiros, numa trilha sonora mórbida que acompanha todo o filme.
Eles são artistas, jornalistas, ativistas e figuras políticas que sabem que permanecer no país equivale a uma sentença de morte. Por isso, o filme mostra a complexa saga da família Makhmalbaf para conseguir asilo político para essas pessoas em países da Europa. Numa cena, negociam com autoridades francesas o resgate de 400 afegãos –a embaixada responde que a lista deve ter, no sumo, 40 nomes.
“Há guerra em todo quina hoje, e o que é mais importante do que a vida das pessoas? Do que posso falar, no meu cinema, enquanto há pessoas morrendo no meu país e nos países vizinhos?”, questiona Hana. “Eu sou cineasta, mas antes disso eu sou um ser humano. Eu não posso mudar essa situação por meio da política, mas se o meu cinema ajudar a salvar uma só vida, já é o bastante para mim.”
Nascida numa família de cineastas, Hana começou a filmar a missão de resgate de forma originário e despretensiosa, com o próprio celular. Dois anos depois, quando percebeu que o mundo tinha tirado os olhos do Afeganistão, lembrou de suas gravações e decidiu que precisava fazer um pouco a reverência. Daí surgiu “A Lista”, que ela apresenta em festivais pelo mundo e também a autoridades e ONGs europeias.
Para ela e a família, a situação vista em cena é pessoal não porque são eles os personagens do documentário, mas porque muitos dos nomes na tal lista pertencem a amigos e conhecidos. Iranianos, os Makhmalbaf moraram no Afeganistão por anos, depois que seu país passou a reprochar e perseguir Mohsen. Hoje eles estão baseados no Reino Uno.
Outro destaque desta Mostra é “No Other Land”, feito por um coletivo de cineastas israelenses e palestinos. Em cena estão o ativista Basel Adra, que luta contra a ocupação israelense da região onde mora, e Yuval Abraham, jornalista judeu que se junta à justificação.
No Festival de Berlim, o filme venceu o prêmio de melhor documentário, mas gerou celeuma. Adra e Abraham foram acusados pela extrema direita alemã de usarem o evento para espalhar o antissemitismo, depois de acusarem Israel de promover um genocídio na Filete de Gaza. Ainda hoje a dupla e sua família vêm recebendo ameaças de morte.
Já o documentário “Risco Verdejante”, da francesa Sylvie Ballyot, acompanha a jornada de Fida Bizri, que relembra sua puerícia em Beirute durante a guerra no Líbano, na dezena de 1980. O filme se tornou dolorosamente atual, ela diz, agora que, mais de 40 anos depois, Israel invadiu novamente a capital do país.
“Essa é uma história que a maioria dos libaneses não gosta de falar sobre”, diz Bizri, que também assina o roteiro. Ela conta que, diante da tensão permanente na região, foi difícil para a população interpretar os anos de silêncio. “Quando filmamos, não pensei que isso aconteceria novamente. Mas hoje é muito mais destrutivo e sevo, porque é mais intenso e mais rápido.”
Para Bizri, fazer cinema é também uma forma de limpar os traumas da guerra. “É um pouco que você precisa digerir e dissecar. Esse é o jeito dos artistas falarem.”