Mostra Em Salvador Celebra Riqueza Das Joias De Crioula

Mostra em Salvador celebra riqueza das joias de crioula – 03/02/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Em 2017, Itamar Musse, antiquarista de Salvador, recebeu por mensagem uma foto antiga enviada por um colega, o curador e estatuário Emanoel Araújo, também baiano. Era uma mulher negra, de porte arrogante, com turbante e muito vestida. O que mais chamava a atenção, porém, eram as joias de ouro e prata no pescoço, braços, pulsos e dedos.

Ele percebeu inicialmente que uma das pulseiras pertencia à sua coleção de mais de 400 joias de crioula, porquê são chamadas as peças que eram usadas por mulheres negras nos séculos 18 e 19, fossem elas escravizadas, libertas ou livres.

Terceira geração de uma família de antiquaristas da capital baiana, Musse observou mais detidamente as outras joias e concluiu que todas elas –colares, braceletes, anéis e brincos– integravam o seu montão.

Quis, logo, saber mais sobre aquela mulher e logo se frustrou. Porquê acontece com a maior secção dos retratos de negras e negros do Brasil desse período, sejam pinturas, aquarelas ou fotografias, não havia identificação na imagem, tampouco o nome do fotógrafo.

O antiquarista encomendou uma pesquisa para as professoras Zélia Bastos e Joilda Fonseca, que conseguiram uma série de documentos sobre a mulher, inclusive o atestado de óbito. Concluíram se tratar de Florinda Anna do Promanação, conhecida porquê dona Fulô. Era uma baiana nascida no Recôncavo que mudou-se quando adulta para Salvador, onde morreu em 1931, aos 103 anos.

Essa senhora de olhar firme é a razão da existência da exposição “Dona Fulô e Outras Joias Negras”, organizada pelo Núcleo Cultural Banco do Brasil (CCBB), que deve terebrar uma unidade em Salvador em 2026. A mostra gratuita fica no Museu de Arte Contemporânea, o MAC, da capital baiana até meados de fevereiro.

A exposição não teria tamanha relevância sem uma outra invenção das pesquisadoras: todas aquelas joias exuberantes pertenciam a dona Fulô.

Retratos de mulheres negras recobertas de ouro e outras pedras preciosas na Salvador do século 19 são comuns. Aparecem em muitos registros de Marc Ferrez e Rodolpho Lindemann, entre outros fotógrafos da idade. Mas porquê explicar tantos ornamentos em mulheres de, supostamente, poucas posses?

Ao longo de décadas, a historiografia solene defendeu que essas joias eram, na verdade, bens dos senhores, que usavam os corpos das suas escravizadas para ostentar sua riqueza. No entanto, ao lado de outros avanços nos estudos sobre o regime escravocrata no Brasil, a invenção da identidade de Florinda reforçou a fragilidade dessa antiga versão.

Pesquisas recentes têm iluminado um vista econômico dos períodos da colônia e do poderio, o dinamismo das ganhadeiras. Escravizadas ou libertas, elas vendiam os mais variados produtos na cidade, entregavam secção dos rendimentos aos senhores –ou aos patrões, no caso das mulheres livres– e ficavam com uma fatia dos lucros.

“Eram mulheres empreendedoras, que exerciam um papel preponderante na sociedade daquela idade”, afirma Musse.

Tapume de centena joias de crioula da coleção do antiquarista estão na exposição no MAC de Salvador, com curadoria de Carol Barreto, Eneida Sanches e Marilia Panitz.

Entre as peças de dona Fulô, há pulseiras com placas de ouro e cilindros de coral, correntes também de ouro com alianças entrelaçadas e anéis com diamante e prata. Todas minuciosamente esculpidas por ourives que também faziam secção da comunidade negra soteropolitana.

Esses adornos compõem “As Raras Florindas”, a principal seção da mostra. Ao deixar essa sala, é inevitável se perguntar por que o Brasil demorou tanto para exaltar, enfim, a venustidade das joias de crioula.

Um poema inédito de Gilberto Gil abre outro núcleo da exposição, “As Histórias de Florindas”. Além de integrar a mostra, o texto, que fala em “gotas de sangue cristalizadas em rubis”, está no recém-lançado livro “Preciosa Florinda”, editado por Charles Cosac e organizado pelo jornalista e noticiarista Eduardo Bueno.

Esse espaço também apresenta a Salvador negra do ponto de vista dos artistas viajantes, porquê o galicismo Debret e o inglês William Smyth. Ao fundo, o visitante encontra uma obra de Vik Muniz, que faz uma releitura da foto de dona Fulô.

O terceiro e último núcleo, “As Armas Florindas”, é devotado ao diálogo da produção contemporânea com as questões trazidas pela trajetória de dona Fulô, porquê o racismo e a ancestralidade. Obras de Moisés Patrício, Nádia Taquary e Tiago Sant’Ana estão entre as mais surpreendentes desta seção.

Além de nome, Florinda agora tem uma vida que merece ser lembrada. E as outras mulheres negras daquela idade? “Nossa vontade é que, a partir dela, outras histórias sejam reveladas. Que apareçam novas Florindas”, diz Musse.

O jornalista viajou a invitação do Instituto Flávia Abubakir

Folha

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *