A réplica ampliada de um cavalinho de madeira labareda para uma mostra temporária no Museu do Ipiranga, com quase milénio objetos e móveis dos primórdios da imigração alemã e italiana no Brasil. É um cavalinho surpreendentemente moderno para ser do início do século 20 –com traços minimalistas e geométricos, ele não tenta imitar a fisionomia do bicho ao pé da letra, mas interpreta-o de forma intuitiva.
Há um ano, a réplica chamava para a mostra no Farol Santander, em Porto Jubiloso. Mas, devido às enchentes no Rio Grande do Sul, foi levado pelas águas e encontrado a um quilômetro de intervalo do sítio.
Na coleção Azevedo Moura –ror dos arquitetos gaúchos Tina e Calito–, são muitos os cavalinhos infantis, desde os modelos mais rústicos aos mais detalhados, pintados em cores vibrantes e com crina em fibras naturais.
“Isso coloca em perspectiva a máxima da [escola de arte e design] Bauhaus, que determina que a forma segue a função. Isso significa que, em teoria, a cultura não interferiria na geração de um objeto”, explica a curadora da mostra “Design e Cotidiano”, Adélia Borges.
Segundo Borges, os cavalinhos remontam ao uso germânico de um paraninfo presentear seu afilhado varão com o objeto, geralmente feito à mão. Sinal de riqueza na Europa, eram mais acessíveis no Brasil –e, até hoje, é um importante símbolo da cultura gaúcha.
A mostra, dividida em dez núcleos, passa por utensílios de cozinha, cadeiras e banquinhos, decorações religiosas, ferramentas e outros itens colecionados principalmente no Rio Grande do Sul, mas também em Santa Catarina e no Paraná, a partir dos anos 1970.
“Cá mostramos que a forma segue, sim, a função. Mas nesses objetos pesam, também, os sonhos, o libido de venustidade, a visão da pessoa que o fez”, afirma a curadora.
Os primeiros imigrantes alemães e italianos –que chegaram ao Brasil de navio, há 201 e 151 anos, respectivamente– eram majoritariamente agricultores. “Pessoas comuns, com objetos comuns”, diz Borges.
“Eles vieram ao Brasil para trabalharem na lavoura –mas nos períodos de inverno e entressafras, eram exímios artesãos”, explica. “Tem uma preocupação estética, um libido de fazer alguma coisa que se distinga, mesmo que simples”.
Exemplo disto são as portas expostas –grandes e maciças, são ornadas com motivos geométricos e florais. Algumas delas, pintadas em cores vibrantes, estão marcadas pela pátina do tempo mas ainda preservam detalhes minuciosos.
Com exceção de alguns itens, porquê cerâmicas importadas por famílias mais abastadas, grande segmento dos itens expostos foi feito à mão.
Alguns dos imigrantes, inclusive, precisaram reaprender seus ofícios para se harmonizar à sua novidade verdade. Marceneiros, por exemplo, se depararam com dezenas de espécies de árvores com as quais não tinham privança –açoita-cavalo, cedro, cabreúva, araucária.
Eles também foram influenciados pelos povos com os quais tiveram contato. A presença de canecas de mate na coleção é testemunho dessa prática, atribuída ao Sul do Brasil, que foi absorvida a partir do contato dos alemães e italianos com os indígenas da região.
Pelas fotografias, podemos ver a “face” dos imigrantes. São famílias numerosas, retratadas com expressões sérias; imagens feitas em comemorações da comunidade; ou até turmas escolares, com crianças loiras descalças e de face fechada.
A mostra ressalta diferenças culturais os italianos e alemães. Os italianos, católicos, traziam consigo imagens produzidas na Europa a reles dispêndio, representando cenas religiosas com santos, Jesus Cristo, o Espírito Santo, além de oratórios de madeira e outros itens.
Já os alemães, predominantemente protestantes, não aderiam ao erudito à imagem. Uma das decorações mais comuns em suas casas eram ditados de parede, quadros ornados com tipografia gótica e dizeres porquê “reze e trabalhe” ou “Deus ajuda quem cedo madruga”.
Na culinária também se distanciavam –enquanto os italianos tinham rolos para preparar massas e raladores de queijo, os alemães tinham potes para chucrutes e geleias, além de um verdadeiro arsenal de itens relacionados ao consumo de cerveja. Estão dispostas canecas de chopp, algumas decoradas com o rosto de pessoas –caricaturas bem-humoradas de bêbados, com rosto inchado e bochechas rosadas.
Um dos costumes curiosos em destaque veio da região da Pomerânia, entre a Ale manha e Polônia, onde noivas vestiam preto no dia do tálamo. Segundo historiadores, esta seria uma forma de reclamar contra a prática medieval “jus primae noctis”, que dava ao senhor feudal o recta de “ter” a primeira noite com a prometida de um vassalo.
Alguns dos objetos não são mais comuns hoje em dia, porquê uma manteigueira. Outros voltam a ser utilizados, porquê utensílios para torrar moca. É uma reflexão que a mostra propõe sobre a mudança dos nossos pertences com o passar do tempo. Em São Paulo não se encontra lamparinas à base de querosena, mas, nos interiores do Sul ou Nordeste do Brasil, podem ser itens corriqueiros.
“Quando as pessoas conseguem mais recursos, tendem a querer extinguir o pretérito”, aponta a curadora. “[Tina e Calito] viram muitas coisas serem descartadas, e por isso passaram a comprar, para preservar essa memória”, conclui.