Em 4 de setembro de 1993, o jornal gaulês Libération publicou uma ilustre entrevista do diretor português Manoel de Oliveira, à quadra um veterano com mais de 60 anos de cinema, feita pelo franco-suíço Jean-Luc Godard, uma das cabeças mais influentes da nouvelle vague.
O resumo da conversa ocupou unicamente duas páginas do jornal, mas trouxe uma teoria de Oliveira que viria a repercutir desde logo na curso de Godard. “É disto que paladar em universal no cinema: uma saturação de signos magníficos banhados na luz da sua privação de explicação”, disse.
Se a publicação não teve os mesmos holofotes de um “Hitchcock/Truffaut”, de 1966, o mais célebre livro de entrevistas na história do cinema —conduzidas pelo agudo e importuno parceiro de Godard na revista Cahiers du Cinéma, ao lado do monumental responsável inglês—, o diálogo, iniciado há três décadas, agora atinge seu vértice.
Com uma extraordinária mergulho na obra plástica do franço-suíço, a exposição “Tendo em Risco de História os Tempos Atuais” reúne pinturas, ilustrações e livros artesanais desse responsável que radicalizou os paralelos entre cinema, artes visuais, o trabalho manual e a termo na Lar do Cinema Manoel de Oliveira, no Porto, em Portugal, em edital até maio do ano que vem.
Entre o modesto, mas altamente simbólico encontro, há 30 anos e o atual, a relação entre os dois cineastas prosseguiu com “Filme Socialismo”, de 2010, uma resposta criativa de Godard a “Um Filme Falado”, lançado sete anos antes por Oliveira.
O título da mostra vem do curta “Film Annonce du Film ‘Drôles de Guerres'”, ou trailer do filme “Guerras de Pataratice”, do gaulês, exibido postumamente no Festival de Cannes do ano pretérito. Hoje disponível na Mubi, a obra, feita com a teórica de cinema Nicole Brenez, destrincha seu processo criativo com uma colagem de pinturas, fotos, bilhetes escritos à mão, costurados à tendência dos ensaios godardianos.
Na sobreposição entre “história” e “ter em conta”, os organizadores apontam para a combinação entre “fabulação e exatidão, imaginação e descrição, invenção e atenção”, ou seja, “as exigências e os recursos do cinema face ao real”.
Os três ambientes da exposição se espalham pelo caminhar térreo da vivenda e permitem vislumbrar “o quanto a obra de Godard porquê artista plástico foi concomitante à curso de cineasta”, segundo Paul Grivas, sobrinho do diretor e integrante do coletivo Ô Contraire!, que o acompanhou em seus últimos anos de vida e que assina a curadoria.
“O material distribuído pelas salas corresponde a três tempos: pretérito, presente e porvir”, diz Grivas, fruto da fotógrafa Véronique Godard. Grivas diz que a mãe, hoje com 87 anos, gostaria de usar a exposição para estruturar a Instauração Jean-Luc Godard, com a missão de reger todo o montão do irmão.
O conjunto se soma a uma exposição multimídia permanente em torno da vida e da obra de Oliveira, que ocupa o superior do espaço projetado pelo arquiteto Álvaro Siza Vieira e inaugurado em 2019 na Instauração de Serralves, um dos principais museus de arte contemporânea da Europa.
Sinais dedicadas à belga Agnès Varda e ao par gaulês Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet estiveram recentemente em edital no espaço, enriquecidas por debates, exibições de filmes e catálogos caudalosos, assim porquê agora.
Uma das joias dessa grinalda é a exibição de “Scénarios”, o último filme de Godard, cuja cena final traz o cineasta um dia antes da sua morte, acompanhada de “Exposé du Film Annonce du Film Scénario”, um treino de planificação diretamente relacionado ao material exposto na vivenda.
Na seção “Pretérito”, que reúne tesouros inéditos, estão peças que Godard fez na puerícia e na juventude, incluindo um retrato de Véronique e uma série inspirada na verso de Paul Valéry. O trabalho mais impressionante —que Grivas destaca porquê frase precoce do “sentimento antiburguês” do tio— é “Le Cercle de Famille: Impressions d´Ensemble” (ou “Círculo Familiar: Impressões Gerais”), representação mordaz do comportamento de seus pais feito porquê um “presente de Natal” para eles.
Em “Presente”, a seção mais ampla da exposição, bisbilhotamos o apartamento de Godard —seu “espaço de pensamento”, segundo Grivas— e a presença das artes plásticas no processo de geração de filmes.
Estão expostos os materiais com os quais ele trabalhava, as fotos e colagens da parede, blocos de notas, cadernos e livros —alguns pré-filme, equivalendo a um estágio majoritariamente visual do roteiro, e outros pós-filme, com reflexões sobre processos de montagem que, em alguns casos, foram publicados.
Vídeos exibidos em monitores registram alguns procedimentos de geração desses materiais. “Ele nunca usou computador, e desistiu de aprender no primeiro dia em que tentamos ensiná-lo”, lembra Fabrice Aragno, também integrante do Ô Contraire! e que trabalhou com Godard em seus últimos filmes. “Ele usava páginas de papel para desenvolver as ideias mesmo em seguida ter incorporado câmeras de vídeo ao seu trabalho.”
No contraste entre os desenhos e pinturas do pretérito e os vestígios da geração de “Scénarios”, no envolvente “presente”, Aragno diz que a anseio da curadoria foi trazer “o primeiro e o último grito de revolta” de Godard, que, segundo ele, exibiu nos últimos dias de vida a “rebuçado formalidade” de concluir o último filme, “dominando precisamente” o tempo de cada projecto e de cada música a ser usada.
Sua última imagem, sentado à leito do quarto, no final de “Scénarios”, ilustra a teoria de que podia deitar e dormir: a última decisão criativa havia sido tomada.
“Horizonte” é a extensão mais ousada —e mais godardiana— da exposição. Inúmeras imagens de filmes, quadros e fotografias são projetadas em lençóis, pelos quais o visitante circula porquê se “entrasse na mente” de Godard, na explicação de Grivas. Ou, lembrando o que disse Oliveira, um estado de mergulho em sonho provocado por “signos magníficos banhados na luz da sua privação de explicação”.