A exposição do artista plástico brasiliano Lucas Arruda, em papeleta até 20 de julho, entra para a história de quatro décadas do Museu d’Orsay por vários ineditismos. É a primeira exposição, ali, de um artista do Hemisfério Sul; a primeira a reunir arte do pretérito e arte atual; e a primeira contemporânea em meio às obras-primas da Galeria dos Impressionistas.
Sim, as pinturas do paulistano de 41 anos estão literalmente lado a lado com as catedrais e ninfeias de Monet, as ondas de Courbet e as paisagens de Pissarro e Sisley. “Nunca imaginei que um dia estaria exibindo cá e teria a rara oportunidade de trazer um pouco da minha luz para dialogar com a luz dos impressionistas”, diz Arruda, quase apertado.
A escolha de Lucas Arruda tem a ver com o Ano do Brasil na França, série de eventos culturais ocasião oficialmente oriente mês. Ele ganhou ainda uma retrospectiva em Nîmes, no sul da França, desta quarta (30) a 5 de outubro no Carré d’Art, importante museu de arte contemporânea. “A gente conseguiu transfixar portas que nem imaginaria que pudessem ser abertas”, diz o comissário brasiliano do Ano, o gestor cultural Emilio Kalil. “É um Brasil diverso que estará por cá.”
No silêncio das salas desertas do Orsay, fora do horário de visitante, enquanto finalizava os preparativos, ele conta que não pôde deixar de pensar no gavinha entre suas preocupações e as dos mestres do final do século 19. É essa a intenção da mostra, ao dispor suas paisagens em três salas dedicadas aos impressionistas. O próprio Arruda teve o privilégio de selecionar as obras que acompanham as dele.
Ao contrário dos impressionistas, Arruda pinta paisagens que existem unicamente em sua mente, mais abstratas que figurativas. Outra diferença é o tamanho –a maioria dos 34 quadros do brasiliano na mostra, milimetricamente alinhados, não mede mais do que 30 centímetros de lado.
Apesar dessas diferenças, o vínculo com os artistas do pretérito é evidente. Em uma das salas, por exemplo, matas pintadas por Arruda ocupam uma parede contígua à histórica série que Monet realizou sobre a catedral de Rouen. Tanto um quanto o outro exploram diferentes possibilidades de luzes e cores.
Em seus quadros, ele explica, apesar da aparente uniformidade, “tem muita coisa acontecendo, muita pincelada curta, quase uma coisa meio ansiosa, um nervosismo para edificar uma paisagem plácida. Isso também tem no Monet, um baita esforço, um sofrimento para edificar um vazio preenchido pela luz”.
As frases pausadas com que ele explica seu processo de geração lembram essas pinceladas. “Tem pinturas que preciso terminar rápido, em um, dois, três dias no sumo, porque preciso ainda da tinta fresca ali, para fundir as cores, raspar e tirar as camadas e colocar de novo. Mas tem monocromos que eu demoro meses, porque são muitas demãos. Tenho que esperar secarem muito muito para fazer a próxima, porque são muito diluídas. Se não estiver muito seca, a terebentina [solvente] remove o que está detrás.”
O nome da exposição, “Que importa a paisagem”, é tirado do “Poema do beco”, em que Manuel Bandeira (1886-1968) reflete, olhando pela janela de seu sobrado na Lapa carioca: “Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a traço do horizonte? / – O que vejo é o beco.”
Nicolas Gausserand, um dos comissários da exposição, explica essa escolha: “[O poeta] Alfred de Musset disse: ‘Que importa o frasco, se temos o álcool?’ Que importa a paisagem, quando se tem o talento e a imaginação de Lucas Arruda para pintá-la?”
Outra influência de um poeta pernambucano é o nome “Deserto-Padrão”, oferecido a um conjunto de paisagens de Arruda. Vem de um poema de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) sobre Medinaceli, povoado ibérico do tempo dos mouros onde, nas palavras do poeta, engenheiros “lograram edificar todo um deserto padrão”.
“Eu adorei essa coisa do deserto porquê padrão, porquê protótipo, teoria, espaço de rascunho. Achei que era um título que ia dar conta dessa pesquisa de espaços vazios, dessa experiência um pouco atemporal”, explica Arruda.
Rebento de uma historiadora e de um jornalista, criado em São Paulo, ele lembra a sentimento que lhe causou aos seis anos de idade, em 1989, uma visitante à exposição “Alice no Brasil das Maravilhas”, no Sesc Pompeia. Era uma “releitura carnavalizada” feita por Joãosinho Trinta a partir da obra de Lewis Carroll. “Tinha um caráter cenográfico, mas ainda assim certa artisticidade, era muito atmosférico”, lembra.
Quando Arruda chegou à idade do vestibular, “não restava nenhuma incerteza” de que queria cursar artes plásticas. Formou-se na Faculdade Santa Marcelina, enquanto desenvolvia sua técnica e trabalhava porquê assistente de nomes de gerações anteriores, porquê Paulo Pasta. O reconhecimento veio aos poucos. Desde 2018, é representado pela renomada galeria David Zwirner. Trabalhos seus figuram em coleções porquê as do Núcleo Pompidou, em Paris; do Masp, em São Paulo; e do Guggenheim, em Novidade York.
Por mais abstratas que sejam as paisagens de Arruda, ele reivindica sua brasilidade. “Não é o Brasil da parábola”, salvaguarda. “Tem uma luz complicada, que eu acho que é a dos nossos tempos.” A tensão é latente nas linhas do horizonte muito baixas e nos céus carregados.
Segundo o presidente do Museu d’Orsay, Sylvain Amic, a exposição também transmite uma mensagem sobre o meio envolvente. “Os artistas, sejam eles Monet, Boudin, Cézanne e agora Lucas Arruda, também são porta-vozes da fragilidade dos ecossistemas. As gerações futuras precisarão dessas visões para continuar a produzir”, afirma.
Será um ano dourado para as artes plásticas brasileiras na França, com exposições, entre outros, de Ernesto Neto no Grand Palais (junho e julho); Anna Maria Maiolino no Museu Picasso (junho a setembro); Lygia Pape na Bourse de Commerce (setembro a fevereiro); Jonathas de Andrade em Peyrassol, no sul da França (abril a novembro); José Antônio da Silva em Grenoble (abril a julho); Cildo Meireles no Monte Saint-Michel (junho a novembro); Ivens Machado e Marina Rheingantz em Nîmes (abril a outubro).