Tragédias pessoais e fracassos profissionais quase levaram o jovem Verdi a largar a música. As duas primeiras óperas que escreveu não vingaram, e num limitado tempo morreram os dois filhos pequenos e sua jovem esposa, que tinha unicamente 26 anos.
A história contada é que o empresário do Teatro La Scala de Milão o persuadiu logo a fazer mais uma tentativa: com libreto de Temistocle Solera, “Nabucco” estreou com grande sucesso em 1842, calçando uma próspera curso que atingiria quase 30 títulos de óperas ao longo das décadas seguintes.
Em edital até sábado no Theatro Municipal, a atual montagem de “Nabucco” replica uma versão –de recepção sátira controversa– originalmente concebida para o Grand Théatre de Genève, na Suíça, com direção cênica assinada pela premiada diretora teatral, dramaturga e cineasta brasileira Christiane Jatahy. Roberto Minczuk dirige com vantagem o Coro Lírico e a Orquestra Sinfônica Municipal.
É difícil sustentar qualquer credo em liberdade e inclusão a partir do confuso libreto de Solera. Escravizados por Nabucco –o rei Nabucodonosor 2º da Babilônia– os judeus do libreto não defendem a liberdade porquê valor, mas a volta por cima de seu próprio deus sobre o inimigo.
E a esperança no paixão verdadeiro do par multicultural formado pelo hebreu Ismaele (papel pequeno muito muito resolvido pelo tenor Enrique Insubmisso) e a assíria Fenema (em participação também discreta e digna da mezzo-soprano Luisa Francesconi) exige, antes de tudo, a conversão religiosa da mulher.
Jatahy procura envolver o público na história a partir da colocação, no meio do palco, de um grande espelho-tela inclinável que, ao mesmo tempo, mostra, em uma de suas camadas, o maestro e a orquestra. Cinema e teatro fundem-se, tanto pelo uso de cenas pré-gravadas porquê por câmeras que registram eventos em tempo real. Gigantes no telão, os cantores-atores ficam pequeninos no palco.
Há venustidade no que se vê. Seja no uso intenso da chuva porquê representação de conflito e luta, na teoria do poder porquê uma roupa que se põe e tira –e que, tecida dos escombros do templo destruído, pode até mesmo ocupar toda a cena–, ou nos momentos em que coro e solistas cantam no meio da plateia, enquanto ampliam e anulam o palco. A encenação do Municipal também integra ao elenco um grupo tristonho de artistas refugiados de diferentes territórios.
Zero disso é novo em ópera. São recursos legítimos e que em si mesmos são resolvidos com cultura. O teatro músico tem, porém, um substância medial que montagens assim podem tornar secundário, a saber, a musicalidade da música.
Espetáculos acústicos porquê óperas exigem sensibilidade para as ideias e afetos transmitidos pelo perfil das melodias cantadas e seus tempos, por sua simetria, pelo ritmo, pela orquestração, pela polifonia do coro. E isso é, em muitos momentos, subjugado pela concepção cênico-visual de Jatahy.
A colocação de cantores no fundo do palco, cantando deitados —ou mesmo de costas— dificulta muito a projeção vocal. Closes dos cantores transmitidos no telão sofrem delays, perceptíveis no movimento labial das melodias. Da mesma forma, é difícil para os coralistas manter a sincronia cantando da plateia, tão afastados uns dos outros e da regência.
A escolha vocal da soprano norte-americana Marsha Thompson, que na récita de estreia (27) cantou o difícil papel Abigaille –talvez o mais multíplice da ópera, e que em certa medida antecipa o Verdi maduro– também não contribuiu para a homogeneidade timbrística e o estabilidade sonoro do elenco.
Por outro lado, o barítono italiano Alberto Gazale foi um Nabucco de milénio sutilezas, e o reles brasiliano Savio Sperandio interpretou o sacerdote hebreu Zaccaria com polidez, volume e emoção.
E o “Va pensiero”? O coro dos judeus escravizados, o momento mais esperado, que surge no terceiro ato –utilizado para além de “Nabucco” em diversos contextos políticos, a iniciar pelo processo de unificação italiana no século 19– foi musicalmente impecável.
Na montagem paulistana, porém, a ópera não termina com o suicídio de Abigaille, conforme Verdi prescreveu. Ao final do quarto ato, um interlúdio músico contemporâneo, constituído por Antonino Fogliani, desbanca totalmente o som verdiano e altera o final, ao qual se adiciona uma segunda performance do “Va pensiero”, agora “a cappella”, cantada pelo coro na plateia. Apesar de invadir o sentido dramatúrgico, é musicalmente belo. Funciona porquê se um bis antecipado fosse instado a fechar a narrativa.