Nana caymmi teve a intensidade do drama na voz

Nana Caymmi teve a intensidade do drama na voz – 02/05/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Ninguém cantou porquê Nana Caymmi, morta nesta quinta-feira, aos 84 anos. Transitando entre os registros de mezzo-soprano e contralto, ela transformou a voz em presença: sua emissão vocal era sentida porquê um corpo, cuja densidade ocupava todos os espaços e remetia à fisicalidade do som. Por extensão, projetava um repertório que não se encerrou em classificações e conjugou tendências da melodia no século 20. Nana ocupou, assim, uma posição soberana na história da música popular brasileira.

Sua arte era, antes de tudo, a de tradutor, com musicalidade, teórica e prática, influenciada pelo quina lírico da soprano italiana Renata Tebaldi, de quem se dizia admiradora. Em outro diapasão, a filha mais velha de Dorival Caymmi e Stella Maris incorporou o modo latino de trovar, dialogando com artistas porquê a mexicana Toña La Negra. Além da técnica, Nana cultivou uma dramaticidade própria para repercutir sambas-canção, porquê o clássico “Só Louco”, formado por Dorival, ainda nos anos 1950. “Ó, insensato coração/ Por que me fizeste suportar?/ Por que de paixão para entender/ É preciso amar, por quê?”, diz o estribilho, dramatizando, com grandiloquência, o paixão cotidiano.

Entre todas as interpretações de “Só Louco”, destaca-se a gravação contida no disco “Quem Inventou O Paixão”, de 2007, com vocalises na buraco e na coda da tira. Do mesmo modo, é proveniente que Nana tenha se interessado pelo bolero, gravando dois álbuns dedicados ao gênero, “Bolero”, de 1993, e “Sangre de Mi Espírito”, do ano 2000. Popular na América Latina e na Península Ibérica, o estilo músico surgiu em Cuba, no século 19, decalcado de uma dança romântica. Nesse sentido, as composições faziam remissão à presença do corpo, avivado com a intensidade das intérpretes. Espelhando o samba-canção, o bolero distingue-se pelas suas melodias lentas e as letras passionais.

Eram, enfim, duas preferências da cantora que entoava “Tu Me Acostumbraste”, do cubano Frank Domínguez, e “Paixão de Mis Amores”, do mexicano Agustín Lara. Não é excesso declarar que, até em consequência de sua biografia, Nana ajudou a estabelecer um diálogo entre a MPB e a música latino-americana. Ainda nos anos 1960, casada com o médico venezuelano Gilberto Aponte Paoli, morou, por quatro anos, em Caracas, onde deu à luz às suas duas filhas, Stella e Denise. Nas décadas seguintes, faria sucesso na Argentina e na Espanha.

Ao contrário do que se possa pensar, Nana não tinha uma abordagem músico passadista. Nunca deixou de incorporar à sua arte as conquistas da bossa novidade, tornando-se tradutor das parcerias de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Por isso, a dramaticidade do quina não significou exacerbação emocional, delimitada por rigor e técnica. Ao iluminar gerações anteriores à bossa novidade, Nana buscou um entendimento totalidade da música brasileira para declarar a sua singularidade. Desse modo, a artista não deixou de reparar para as renovações estéticas propostas por sua geração. O disco do ano de 1979 que levava seu nome tinha, na terceira tira, a tradução de “Clube da Esquina nº2”, de Milton Promanação, Lô Borges e Márcio Borges.

Nana também cantou sambas, porquê “Passarela” e “Acorda Que Eu Quero Ver”, ambos compostos por Carlos Dafé e incluídos em álbum, lançado quatro anos antes. Também se destacam na voz de Nana as canções “Sem Término”, “Por Um Segundo”, “Suave Veneno”, Pra Machucar Meu Coração”, além de “De Volta ao Primórdio” e “Resposta ao Tempo”, seu maior sucesso mercantil, criado por Cristóvão Bastos e Aldir Blanc. Ela não cedia, porém, a modismos estéticos ou a pressões da indústria fonográfica.

Em certos momentos, a vida pessoal tampouco a permitia manter a intensidade da agenda de shows. Em 1989, seu fruto, João Gilberto sofreu um acidente que o deixou com sequelas físicas e mentais. João Gilberto era dependente químico e foi recluso algumas vezes. Nana não escondia o matéria e sempre esteve ao lado dos três filhos.

Com a chegada do século 21, a arte de Nana seria apreciada por um público sofisticado, embora as intenções de seu trabalho estivessem postas desde sempre. Em 1966, entrou para a história ao vencer o 1º Festival da Música, com “Saveiros”, de seu irmão, Dori Caymmi, e de Nelson Motta. Foram vaiados por um Maracanãzinho lotado, que torcia para a segunda colocada, Maysa, defendendo “Dia das Rosas”, de Luiz Bonfá e Maria Helena. Apesar do susto, Nana considerou o incidente porquê um estágio.

Entre o samba-canção e o bolero, era um tipo de mulher carioca. O parlanda, não muito castiço, manifestava sinceridade irrestrita e, em anos recentes, deixou se ver, em vídeos que se tornaram “standards” humorísticos no Youtube. Em um deles, Nana joga carteado, enquanto bebe uísque e se abana com seus leques. “Gente, eu me adoro cantando, palato demais de mim”, disse, na sala de seu apartamento, logo depois de solfejar, no meio de amigos, canções de seu pai. “Puta que pariu, que música!”.

Nana não escondia o apreço pelo Rio de Janeiro quando entoava “Copacabana” e “Sábado em Copacabana”. Por fim a tradutor aprendera em lar a valorizar os prazeres da vida, porquê um “bom jantar depois de dançar” e, depois, “passear à praia”. Resta Copacabana, mas, no estampa das ondas do calçadão, não caminham os artistas de outrora, rumando até as boates iluminadas. A voz de Nana se soma agora a tantos ecos silenciados do bairro, que estão implícitos, entre a decadência e o mistério, num bar à meia luz, onde, apesar de tudo, ainda pulsa a vida mais chã.

Folha

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