Tendo ensaiado o dia todo, Nathalia Timberg não dispensa encenar um prólogo à entrevista. Para não perder o sentido e a musicalidade que subjazem às palavras, ela recita, em francesismo, a célebre “Melodia de Outono”, de Paul Verlaine, seu poeta preposto. Em seus versos, o responsável tentou apreender a passagem do tempo, uma inquietação generalidade à vida de Timberg, atriz incontornável do teatro brasílico, que completou 95 anos nesta segunda.
Sua trajetória, de todo modo, é mais afeita ao gênero homérico que ao lírico, cultivado pelo poeta simbolista. Não por contingência, ela volta agora aos palcos, depois de seis anos, para protagonizar a peça “A Mulher da Van”, que chega ao Sesc Pinheiros no dia 16.
“Verlaine me salvou de um delito. Durante anos me retraí à verso. Tinha horror quando ouvia as pessoas declamando, elas não percebiam que o poema tem a sua estrutura e não se trata de um texto dramático”, diz ela, que apresentou um programa devotado ao tema, na dezena de 1960, na extinta TV Excelsior.
“A verso, querido, está na base do voo do ser humano. A arte teatral se propõe a empreender esse voo junto, numa transposição de vida e de percepção de mundo.” A idade, ela diz, nunca foi um impedimento para a encenação.
Timberg está encantada pelo texto há 15 anos, e o projeto só não tinha saído do papel devido à pandemia. “Essa peça me soa lindamente despretensiosa, ainda que o responsável tenha muitas qualidades ao observar o mundo”, afirma. “Essa simplicidade do texto contrasta com o mundo que está vivendo uma passagem. A tecnologia toda-poderosa precisa encontrar o seu lugar sem violentar os seres humanos.”
“A Mulher da Van” se alicerça num incidente, ocorrido, nos anos 1970, na vida do responsável da peça, o dramaturgo inglês Alan Bennett. Morando num bairro de classe média, em Londres, Bennett, papel de Caco Ciocler e Eduardo Silva, passou a ser perturbado, todos os dias, pela presença de uma idosa, que morava, em frente à sua mansão, numa van. Mary Shepherd, interpretada por Timberg, tinha um comportamento hostil e até escatológico.
Pouco a pouco, uma relação de cumplicidade se cria entre o responsável e a idosa. Bennett passa a tutorar a sua novidade vizinha, afugentando os passantes que a atacavam. Em seguida, ainda a convidou para viver em sua garagem. Durante a peça, o pretérito da mulher vai sendo revelado, surpreendendo a todos com fatos curiosos. Logo no início, o público descobre que Mary Shepherd foi uma talentosa pianista, tendo tido aulas com o maestro Alfred Cortot.
“A Mulher da Van” é um retrato das disparidades sociais da Inglaterra e antecipa temas atuais, porquê o etarismo. A estreia da peça ocorreu há 25 anos, e o sucesso foi tamanho que o dramaturgo adaptou o texto, em 2015, para o cinema, com Maggie Smith no papel protagonista.
Na montagem atual, o diretor Ricardo Grasson dialoga com a sétima arte. Ele procura explorar elementos do realismo fantástico, movimento mediano na literatura latino-americana, que se popularizou no cinema, mas ainda pouco visto nas artes cênicas.
Ao todo, Timberg vai contracenar com outros sete atores, incluindo Duda Mamberti e Noemi Marítimo, os vizinhos Rufus e Pauline respectivamente, além de Lilian Blanc, que faz a assistente social.
Para Timberg, interpretar a protagonista não exigiu a ela uma preparação dissemelhante do que exercitou ao longo da curso, mas somente o “que já faz secção da maneira de estar do artista.” Nas coxias, ela diz aos colegas fazer um artesanato, que às vezes vira arte.
É um ensinamento familiar. Seu pai era um ourives holandês, e a mãe, belga. Na puerícia, a carioca Timberg chegou a morar na Argentina, aprendendo espanhol, além do francesismo e do holandês, antes de sua família se estabelecer em definitivo no Rio de Janeiro. Ainda que não seja religiosa, o judaísmo sempre foi uma explicação para a sua identidade errante. “É a minha raiz totalidade, porque está na base do pensamento mítico da humanidade. É uma experiência que se desdobrou, com o tempo, em tantas outras correntes”, afirma a atriz.
Timberg mostrou a vocação artística aos seis anos, atuando num filme que se perdeu, durante um incêndio. Mais tarde, ela ingressaria na Escola Pátrio de Belas Artes, antes de participar do Teatro Universitário e se mudar para Paris, onde aprofundou a sua saber e se confrontou com a técnica francesa. Não só por suas origens, Timberg seria sempre associada às grandes atrizes europeias, durante a sua curso, se tornando uma referência de elegância.
“Quando nós falamos em nacionalidade brasileira, precisamos considerar as nossas raízes. Tive uma discussão amigável com o Vianinha sobre esse tema”, lembra Timberg. “Ele adorava falar de brasilidade no teatro. Logo, disse, ‘se você for por aí, teremos de fazer todas peças em tupi-guarani.’” De volta ao Brasil, ela fez sua estreia profissional nos palcos, com a peça “Senhora dos Afogados”, de Nelson Rodrigues, na Companhia Dramática Pátrio.
Ali, a atriz teria um encontro decisivo com Bibi Ferreira, líder à quadra da instituição. “Bibi tinha uma raiz dentro do teatro, que já havia sido fundada antes por sua família. Era uma universidade pessoal”, afirma Timberg.
Em seguida, a artista foi para o Teatro Brasílio de Comédia, o TBC, onde ajudou a mudar a história das artes cênicas no país, consolidando a profissionalização dos artistas. Entre os títulos mais importantes, está “Criancinha de Pedra”, que suscitou uma famosa sátira de Décio de Almeida Prado. “Nathalia Timberg rompeu a seleta barreira que separa as boas atrizes das atrizes excepcionais”, ele escreveu.
Ainda na dezena de 1950, os caminhos de Timberg se entrelaçariam ao de Fernanda Montenegro. Na peça “Rua São Luiz, 27, 8º andejar”, as duas atrizes se recusaram a vestir um baby-doll, porquê proposto pelo figurino. “Não se havia conhecimento do machismo no teatro, mas achamos gratuito usar aquela roupa, parecia um pouco apelativa”, diz. Elas iriam juntas explorar as raízes da telenovela do Brasil, primeiro no Grande Teatro Tupi, exibido pela TV Tupi.
Timberg e Montenegro selaram, ao mesmo tempo, uma amizade e uma concorrência. “Não era uma concorrência no sentido de se sobrepor ao trabalho da outra atriz, mas de poder realizar o que se desejava. Era positivo”, lembra Timberg, que foi até o camarim da amiga, em edital com uma leitura sobre a obra de Simone de Beauvoir.
A parceria se estendeu à romance “Babilônia”, em 2015, quando fizeram par romântico e deram um ósculo lésbico, cena atacada por segmentos da sociedade. Casada com o jornalista Sylvan Paezzo, Timberg teve um quadro de crônicas no Tele Mundo, o primeiro jornal da emissora, que foi ao ar em 1965.
Em seguida, participaria da era dourada das novelas. Timberg trabalhou em “Ti Ti Ti”, “Pantanal” e “Vale Tudo”, títulos que já ganharam ou vão lucrar remakes. Ela não pensa, no entanto, que as novas versões signifiquem uma falta de originalidade das gerações mais jovens. “O mundo não está parado, são tempos de passagem e de reajuste até da linguagem”, afirma. Do mesmo modo, pensa ser raso o debate sobre o elenco ideal para o remake de “Vale Tudo”.
“Odete Roitman foi inesquecivelmente feita pela atriz Beatriz Segall. Agora deve ter outra artista, que dará uma novidade versão, será dissemelhante. Beethoven escreveu sinfonias e, depois, veio Mahler. É pequeno autoanalisar o que se fez no pretérito”, diz ela, que deu vida a Celina Junqueira, na primeira versão.
Já os seus trabalhos no cinema remontam ao contexto da ditadura militar. Em 1968, trabalhou em “O Varão que Comprou o Mundo”, de Eduardo Coutinho, e, duas décadas depois, esteve em “Dedé Mamata”, uma sátira aos alienados da ditadura.
Seu principal enfrentamento ao regime aconteceu, de todo modo, no teatro e logo em 1964. Na peça “Antígona”, escrita por Jean Anouilh, que tinha porquê tecido de fundo a França ocupada, a plateia bradou “não”, junto com Timberg, num grito por liberdade contra o golpe. “Senti que cumpri a minha meta, num momento de asserção, foi incrível”, afirma. “Quando se trabalha com artes, o que se quer é tocar o outro, e o teatro é a interação mais concreta.”
“Não existe margem de improviso ou jeitinho com Nathalia. Ela tem um rigor sem igual com a língua, um obstinação com o português”, diz a atriz Clara Roble, tradutora de “A Mulher da Van” e que contracenou com Timberg em “Do Fundo do Lago Escuro” e em “Melanie Klein”.
“Ela constrói uma partitura física para fazer as suas personagens. Quando ela pegava o cigarro no experiência, ela imediatamente se transformava na psicanalista”, afirma Eduardo Tolentino de Araujo, diretor das duas peças. “Isso é pensamento refletido em ação.”
Timberg conta que, ao longo do tempo, seu estilo foi ficando menos solene. O tom clássico se ajustou às diferentes personagens e linguagens, mas se manteve sempre a serviço dos textos de Luigi Pirandello, Jean-Paul Sartre, Arthur Miller, Eugene O’Neill, Samuel Beckett e Anton Tchékhov.
Timberg se dedicou a encenar os grandes autores, radicalizando a teoria de popularizar o teatro, ainda nos anos 1970, quando criou O Circo do Povo, uma lona onde apresentava as suas peças para as camadas populares.
“E vou ao vento/ Que, num tormento,/ Me transporta/ De cá pra lá,/ Porquê faz à folha morta”, diz a última estrofe da “Melodia de Outono”. Timberg ainda é seduzida pelo pensamento de Verlaine, que vê o tempo passar em folhas mortas, revolvidas numa vento.
Mas, as quase oito décadas de curso ofereceram à atriz uma percepção menos sensorial da experiência humana. Timberg observa a sua existência com o olhar fixo de quem se confronta com toda a paisagem da vida.
“Diante de estar atingindo quase o centenário, percebo o mundo de forma cada vez mais ampla e profunda. A idade avançada me dá a percepção de quanto tempo a mais eu precisaria para abranger tudo o que pressinto, tudo o que gostaria de perceber melhor. Se a vida é um mistério em si, você ter consciência de estar vivendo esse mistério já é um enriquecimento enorme.”