No Debate Público, A Fé é Cega, Mas As Facas

No debate público, a fé é cega, mas as facas continuam amoladas – 28/05/2024 – Wilson Gomes

Celebridades Cultura

O debate público brasílio anda tão encharcado de gasolina que o mínimo atrito de ideias, coisa normalíssima na esfera pública democrática, gera um incêndio de grandes proporções.

A inevitável procura por cliques das versões online dos jornais, em perene crise financeira, e o paywall que nos títulos das reportagens entrega razões para a fúria, mas não os fatos ou argumentos que se situam depois deles; os grandes reservatórios de raiva e ressentimento político que se acumularam desde 2013 neste país e levaram grupos a aguçar facas e preparar porretes para quando fosse a sua vez de espancar; a transformação do dedo da discussão política, que converteu interlocutores que acreditavam em divergir com urbanidade em militantes e militantes em guerreiros; a extrema tribalização da vida pública, com o aumento dos incentivos que cada grupo oferece para a radicalização e a intolerância —tudo isso contribuiu decisivamente para esse novo modo de debater política à base da “fé cega, faca amolada”.

Fala-se muito em polarização e muitos entendem que seja um problema de binarismo, acreditando que uma terceira via quebraria esse manipanço. É um miragem.

Polarização significa exclusivamente que o meio foi esvaziado, todos foram se apertando nas posições mais extremas, não importa se são duas, três ou cinco. O problema, insisto, consiste na radicalização associada ao descuramento das posições moderadas, que se esforçam em produzir pontes, negociar pontos de vistas e ouvir o outro lado.

O país foi crescentemente tribalizado e radicalizado, e de forma tão intensa que mesmo as vozes mais sensatas não parecem se dar conta de que findam por soprar as brasas que inflamam os ânimos e impedem entender o que o outro quer expor.

Alguns exemplos me parecem ilustrar essa premissa, mas hoje ficarei exclusivamente em um deles, prometendo voltar ao tema.

Há algumas semanas, uma pilar de Joel Pinho da Fonseca nesta Folha reconhecia que a direita antibolsonarista –”minoria valorosa, imprescindível no debate público qualificado, mas incapaz de invadir as multidões”– precisaria produzir espaço para que “bolsonaristas moderados” ascendessem. E estabelecia os requisitos da moderação exigida: respeitar as regras da democracia, admitir os resultados das urnas e repudiar o uso da violência.

O mundo veio inferior. Alguns responderam com argumentos, que é o que se espera do debate público, sustentando que, porquê “bolsonarismo” é simplesmente a denominação que por cá damos à extrema direita, “bolsonarista moderado” seria um tanto porquê “radical moderado” ou “extremista de meio” ou “evidente mistério” –uma impossibilidade lógica, um oximoro.

Finalmente, extremistas de direita, por definição, têm tendências autocráticas.

Teoricamente sim. Mas o bolsonarismo é também um antipetismo, um reacionarismo e uma posição antiestablishment, distribuído ao longo de um espectro que vai das formas mais radicais e fanatizadas às mais mitigadas e hesitantes, porquê todo movimento político. Seria o bolsonarismo a única posição homogênea e unidimensional na política? Um ceticismo saudável nos levaria a descrer disso.

Isso posto, não deveria a direita republicana (isso não é oximoro) considerar a possibilidade de herdar secção do patrimônio eleitoral do bolsonarismo depois de decantar e mondar ao menos suas pulsões fascistoides e a sua inclinação a admitir a brutalidade porquê instrumento da política?

Argumentos desse tipo, porém, foram raros. Em universal, o debate foi contaminado por inferência acerca das intenções do colunista, portanto, da Folha, logo, da mídia corporativa, por conseguinte, do neoliberalismo.

Simples, para guerreiros, o que existem são trincheiras e combatentes. E logo se decidiu que claramente o propósito da fantasiosa invenção de um bolsonarismo moderado era “regularizar” e ungir o governador de São Paulo porquê herdeiro do legado eleitoral do bolsonarismo. O que muitos consideram intolerável, considerando particularmente o ranço antipetista da sua retórica, a adoção da brutalidade porquê política de segurança pública e as suas sucessivas demonstrações de canina fidelidade a Bolsonaro.

Suspeitar de uma agenda oculta do colunista é bastante para desaprovar, a priori, o seu argumento.

O veste, meus amigos, é que os campos magnéticos do bolsonarismo e do petismo continuam atraindo e distorcendo com tal força as discussões políticas que não se permite sequer que se façam projeções sobre o mundo pós-Bolsonaro ou pós-Lula.

Tudo é tragado pelo voragem da partidarização e da radicalização, no qual os argumentos morrem e a razão dá lugar à mera vontade.


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Folha

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