Há uma ilusão curiosa —e muito difundida— segundo a qual a maioria, ainda que silenciosamente, quer as mesmas políticas, valoriza os mesmos princípios, enxerga o país do mesmo jeito que a gente. Essa crença subjetiva de que nossas ideias são majoritárias, mesmo quando não são, é muito conhecida na psicologia social e atende pelo nome de viés de falso consenso.
É um viés cognitivo, ou seja, uma tendência psicológica automática que faz com que projetemos nossas características e preferências sobre o coletivo. Progressistas tendem a superestimar a adesão da sociedade —ou da melhor segmento dela— aos seus valores; conservadores estão convictos de que o Brasil profundo é conservador uma vez que eles.
A esquerda tem certeza de que a tamanho compartilha sua visão de mundo, seu noção de justiça e sua teoria do papel do Estado; a direita tem certeza de que qualquer pessoa lúcida e muito informada não tem incerteza alguma sobre a superioridade da sua agenda e de suas políticas. Sim, a mente costuma nos pregar esta peça: a de que os outros é que são minoria —as pessoas sensatas pensam uma vez que nós.
Até aí, zero grave, perceptível? Certas ilusões respondem às nossas necessidades de obter validação social, e zero há de mais reconfortante e tranquilizador do que a crença de que estamos com a maioria —mesmo que seja uma crença falsa.
O problema é que, cedo ou tarde, indivíduos que sustentam opiniões que se creem majoritárias, mas não são, acabam se deparando com decisões políticas ou resultados eleitorais que não correspondem às suas próprias visões. Por não serem capazes de se entender uma vez que segmento minoritária da sociedade, o resultado não é somente frustração: é ressentimento. Uma vez que admitir que uma maioria pense uma vez que eu e, ainda assim, as coisas continuem sendo decididas de outra maneira?
Um item deste ano dos pesquisadores alemães Steiner, Landwehr e Harms, na Political Psychology, mostra uma clara reciprocidade entre a crença ilusória, por segmento de minorias, de serem segmento de uma maioria silenciosa, e o populismo de direita que por lá anda prosperando. Enfim, se os nossos interesses não encontram canais de frase na política institucional, é porque a escol, corrupta e anti-povo, não ouve a maioria, bloqueia sua voz e passa por cima da vontade popular.
A essa profundidade, a sátira ao sistema político vira ressentimento contra “as elites” e, mais um passo adiante, a política se transforma em uma guerra moral entre “o povo” e “os corruptos”. Nesse caso, sobra até para “a democracia que está aí”, supostamente distorcida pela escol traidora e corrupta —e, portanto, passível de substituição.
Essa crença ilusória de que somos maioria está ligada não somente à hostilidade contra as instituições, mas também à intolerância contra a simples discordância. Se a maioria pensa uma vez que eu, logo é justo que minha opinião prevaleça e que a suposta minoria ponha-se em seu lugar. E se alguém ousa discordar, o problema não está na diferença entre visões, mas em uma omissão no caráter de quem diverge.
Divergir da política pública predileta de cada grupo, portanto, não é frase de uma diferença legítima, mas uma enunciação de guerra moral. As cotas dos identitários, a resguardo da família “uma vez que está na Bíblia” dos conservadores, a centralidade do enfrentamento da desigualdade da esquerda, a crença na superioridade da gestão privada da direita —tudo isso está fora de discussão.
É intocável, mesmo em nível argumentativo. E qualquer política pública em contrário será considerada uma repulsão. Na raiz de tudo, está a certeza de que a maioria compartilha nossas convicções, de que a sociedade não está dividida ao meio e de que os minoritários são sempre os outros.
No fundo, essa crença nos poupa do esforço de perfurar espaço para buscar dados, escutar, revisar nossas certezas. Essa ilusão de consenso nos permite permanecer no conforto das nossas bolhas, certos de que representamos o muito, o povo e a verdade.
O outro lado vira prenúncio; o pluralismo, um rumor incômodo; “essa democracia que está aí”, um estorvo que atrapalha o cumprimento do fado moral do nosso grupo.
Talvez o maior repto para a democracia hoje não seja somente o ódio ou a desinformação, mas essa fé cega de que já vencemos o debate antes mesmo de ele estrear. Confiar que somos os porta-vozes da maioria silenciosa é uma tentação poderosa, mas perigosa, porque é uma porta ocasião ao populismo, à intolerância e à incapacidade de mourejar com a complicação do mundo —ainda mais em sociedades polarizadas e radicalizadas.
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