Em recente pilastra sobre a final da Eurocopa, o jornalista Juca Kfouri defendeu a tese de que os times europeus finalistas da competição se renderam à miscigenação. Enquanto o mundo incorpora a mistura racial, o Brasil perdeu a vanguarda desta bandeira.
Os dois grandes astros da vitória espanhola na Eurocopa foram estrangeiros —Nico Williams, que tem sangue ganês, e Lamine Yamal, de pai marroquino e mãe da Guiné Equatorial.
O time inglês também abraçou a miscigenação. Sem descrever os que ficaram no banco, seis negros jogaram sob a bandeira da rainha: Ollie Watkins, Kyle Walker, Kobbie Mainoo, Bukayo Saka, Marc Guéhi e Jude Bellingham.
A França, derrotada pela Espanha nas semifinais, foi o time europeu que primeiro ressignificou seu futebol ao incorporar os filhos coloniais. Até a dez de 1980, a equipe francesa era composta só por brancos e seu grande herói pátrio era Michel Platini, um francesismo tipo-ideal. Nunca ganharam uma Despensa do Mundo sequer.
Com o termo do colonialismo francesismo no século 20, muitos ex-colonos migraram para a metrópole. Seus filhos seriam campeões do mundo sob a bandeira da França. Na dez de 1990, o futebol francesismo da geração Zinedine Zidane incorporou árabes e negros, abraçando a teoria de uma França multicultural. Essa França negra e arábico foi campeã duas vezes.
Pode até parecer que não há preconceito no Velho Mundo. Não é isso que Juca quis expressar, obviamente. O preconceito racial ainda está lá, e a trajetória de Vini Jr. na Espanha demonstra isso. Ainda assim, as sociedades não são unidimensionais e a ampla quantidade de jogadores de outras descendências em times europeus demonstra que as brechas antirracistas existem. E são vitoriosas, para o desprazer dos racistas.
Quando morei na França na primeira dez do século, joguei futebol em ligas amadoras na periferia de Paris com árabes, negros e alguns brancos. Eles me contavam sobre uma França que não era mais “blanc-bleu-rouge” —branca, azul e vermelha, as cores da bandeira—, mas “blanc-black-beurre”, ou branca, negra e manteiga. O vestuário de usarem “black”, e não “noir” —preto em francesismo— diz muito sobre essa França mais ocasião e menos autocentrada.
Para nós, brasileiros, “blanc” e “black” são muito compreensíveis. Mas e “beurre”? Para um francesismo “puro-sangue”, o fruto de argelinos Zidane não é branco, mas “amanteigado”, ou seja, arábico. Faz-se questão de demarcar que pessoas uma vez que ele, mesmo nascidas em Marselha, não são de sangue francesismo.
Meus amigos falavam de “blanc-black-beurre” sem pudor, identificando-se com essa novidade França, embora essa identidade ainda analisasse as raças uma vez que blocos sociais. Todos sabiam o quanto a sociedade francesa era racista, mas defendiam a utópica bandeira porque ela apontava para uma sociedade que aceitava a diferença, ainda que segmentada à francesa.
Juca argumentou corretamente que “o traço que distinguia os brasileiros no futebol está cada vez mais distribuído pelo mundo afora. Ótimo! Deixou de ser exclusividade dos inventores do jogo bonito de Didi, o Príncipe Etíope, do indígena Mané Garrincha, dos Ronaldos, Romário, Rivaldo, de Marta, de Pelé”.
Há um oferecido positivo nisso, mas há também uma guia para o Brasil. A resguardo do multiculturalismo racial deixou de ser nossa bandeira, com nossa conivência. No Brasil, tornou-se fora de voga falar de democracia racial. Uma porta para o cancelamento se abre caso alguém use leste termo na atualidade.
Palavras uma vez que “mulato” foram proscritas do vocabulário pátrio por aqueles que buscam honrar claramente a sociedade entre negros explorados e brancos exploradores. Não há mais lugar para a apologia à mistura, vista uma vez que conciliatória e ingênua. O hibridismo racial entre nós é desvalorizado e não serve mais nem uma vez que uma utopia de região.
É simples que o racismo não acabou no Brasil, muito menos na Europa. Levantar a bandeira da miscigenação não significa calar-se sobre nossas cicatrizes. Apesar de nossas chagas, ainda teríamos muito a ensinar sobre miscigenação ao mundo.
Mesmo com todas nossas deficiências, conseguimos uma mistura que não é aquela segmentada da França. A democracia racial nunca foi atingida, mas quem, apesar dos pesares, esteve mais primeiro do que nós, imperfeitos brasileiros?
Se quisermos deixar de ser colônias mentais do mundo europeu e americano, é preciso valorizar nossas riquezas sem vergonha ou autocomiseração. Que nos roubem a teoria, mas não a maternidade, finalmente fomos nós que gestamos a miscigenação para o mundo.
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