O Dia Em Que Bob Marley Jogou Futebol Com Chico

O dia em que Bob Marley jogou futebol com Chico Buarque – 14/02/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Bob Marley estava em estúdio gravando “Uprising” —aquele que viria a ser seu último álbum lançado em vida— quando recebeu um invitação para lá de irrecusável de Ramón Segura, diretor universal da Ariola Records: participar da sarau de lançamento da gravadora alemã no Brasil.

Torcedor enamorado da seleção à idade tricampeã do mundo, o cantor jamaicano, logo com 34 anos, nem pensou em recusar o invitação. “Rivelino, Jairzinho, Pelé… A Jamaica gosta de futebol por razão do Brasil”, explicaria, dias depois, já em solo brasiliano.

Invitação aceito, um dos maiores nomes do reggae de todos os tempos embarcou em Port of Spain, em Trinidad e Tobago, rumo ao país do futebol. Marley não veio sozinho. A bordo de um jato pessoal fretado pela Island Records, gravadora jamaicana fundada em 1959 que, hoje, pertence ao pilha da Universal Music, vieram, também, o guitarrista Junior Marvin, da filarmónica The Wailers, o cantor Jacob Miller, do grupo Inner Circle, o executivo Chris Blackwell, fundador da Island Records, e a sua mulher, a atriz e padrão Nathalie Delon.

E a comitiva seria ainda maior se o cantor e compositor Barry Manilow, também convidado para prestigiar o evento, não tivesse mudado de teoria na véspera do embarque.

Segundo Marco Mazzola, o fundador da Ariola Discos no Brasil, o voo de Bob Marley teve duas escalas: uma em Manaus, outra em Brasília, ambas para reabastecimento.

No livro “Ouvindo Estrelas —A Luta, A Ousadia e a Glória de Um dos Maiores Produtores Musicais do Brasil” (Editora UBK, 2007), Mazzola conta que, em Manaus, os militares desconfiaram daquelas “figuras estranhas” e pediram explicações sobre o motivo da viagem.

Depois de qualquer tempo, liberaram seus passaportes, mas não concederam vistos de trabalho. “Isso nos causou muita frustração”, admite Mazzola. “Tanto nós quanto eles sonhávamos com uma ‘jam’ [improvisação] na sarau de lançamento”.

Por volta das 18h30 de terça-feira, 18 de março de 1980, a avião pousou no Rio de Janeiro. No saguão do aeroporto Santos Dumont, Bob Marley —vestindo uma capelo de tricô chamada de tam— falou da vontade de saber Gilberto Gil.

Em agosto de 1979, Gil tinha lançado “Não Chore Mais”, sua versão para “No Woman, No Cry”, um dos maiores hits do repertório do artista jamaicano. “O reggae tem a mesma raiz, o mesmo calor e o mesmo ritmo do samba”, declarou aos repórteres. Do aeroporto, Marley e sua comitiva seguiram para o Copacabana Palace.

Fanático por futebol, Bob Marley não era torcedor de um clube só. Na Jamaica, o menino que aprendeu a jogar esfera nas ruas de Trenchtown, bairro pobre de Kingston, a capital do país, torcia pelo Boys Town. Mas, na Inglaterra, seu “time do coração” era o Everton, na Escócia, era o Celtic e, no Brasil, o Santos.

Na quarta, dia 19, dia seguinte à chegada no Rio, o rei do reggae ganhou de presente de Pelé, o rei do futebol, uma camisa 10 do time da Vila Belmiro.

Em sua visitante ao Rio, Marley realizou outro sonho: saber Paulo Cézar Lima, também divulgado uma vez que Paulo Cézar Caju, companheiro de Pelé na seleção que conquistou a Taça Jules Rimet no México, em 1970.

“O futebol fazia tanto segmento da vida de Bob Marley quanto a música”, afirma o biógrafo Gerald Hausman, organizador da selecta “O Horizonte É O Primórdio” (Editora BestSeller, 2013). “Adorava combinar cedo para passar e jogar esfera. Quando estava em campo, sentia-se revigorado.”

Na única vez em que esteve no Brasil, Bob Marley não entrou em estúdio ou subiu ao palco. Mas, boleiro incorrigível, não abriu mão de mostrar seus dotes uma vez que jogador.

A “pelada” foi marcada para o Núcleo Recreativo Vinícius de Moraes, no quilômetro 18 da Avenida Lúcio Costa, antiga Sernambetiba, no Recreio dos Bandeirantes. É lá que funciona, até hoje, o estádio do Politheama, o time de futebol do cantor e compositor Chico Buarque que, reza a mito, nunca perdeu uma partida solene.

“Politheama era o time de botão do Chico, azul e verdejante, que ele fundou aos 15 anos”, explica a jornalista Regina Zappa, autora das biografias “Chico Buarque: Para Todos” (Ima Editorial, 1999) e “Chico Buarque —Para Seguir Minha Jornada” (Editora Agir, 2011). “Depois, foi promovido a time de futebol de verdade. No heleno, Politheama significa: muitos espetáculos.”

‘Sou passarinho, não ornitólogo’

Ao contrário de Bob Marley, que torcia por diferentes clubes, Chico Buarque é torcedor de um time só: o Fluminense —paixão que herdou da mãe, Maria Amélia. Mas, os dois, Marley e Chico, têm um pouco em geral: sempre que saem em turnê, dão um jeito, antes ou depois dos shows, de maltratar uma bolinha com seus músicos ou membros da equipe técnica.

Certa vez, na falta de um campinho de futebol e de um time opoente, Chico e alguns integrantes de sua filarmónica, uma vez que o percussionista Chico Batera, improvisaram uma troca de passes e uns chutes a gol no galeria de um hotel em Brasília.

Mas Chico não gosta exclusivamente de jogar futebol. Também gosta de observar aos jogos pela TV e, de quando em quando, ser historiógrafo esportivo —em 1998, na Despensa do Mundo da França, escreveu uma poste para o jornal O Orbe.

Até fabricar um jogo de tabuleiro sobre futebol, Chico Buarque já criou o Ludopédio, em 1969, pela Grow. A única coisa de que ele não gosta é teorizar sobre futebol. “Sou passarinho, não ornitólogo”, costuma expor, citando o redactor chileno Antonio Skármeta.

Desde que o Politheama foi inaugurado, em 1979, Chico e outros “peladeiros” assumidos, uma vez que o cantor Carlinhos Vergueiro e o produtor e empresário Vinícius França, costumavam se reunir três vezes por semana —às segundas, quintas e sábados— para jogar esfera.

Indagado sobre quem seria o “craque” do Politheama, Carlinhos Vergueiro diz que não gostaria de cometer injustiças. “O Politheama é, antes de tudo, um time. O entrosamento favorece as individualidades”, filosofa.

Naquela tarde, o Politheama ganhou alguns reforços: Toquinho, Moraes Moreira e Alceu Valença, todos recém-contratados pela Ariola. Bob Marley chegou às 15h50. “Para minha tristeza, não compareci a esse evento histórico”, lamenta Vinícius França. “Estava prestando exames finais na PUC”.

Um craque entre os peladeiros

Evandro Mesquita compareceu, mas chegou procrastinado. Estava na praia com Regina Casé e Patricya Travassos, acertando os últimos detalhes de um tentativa do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone, quando Paulo Cézar Lima o convidou para jogar esfera.

“O Bob Marley tá na mansão do Chico e quer jogar com a gente. Bora lá?”, perguntou PC. Evandro quase caiu para trás. “No primórdio, as duas estranharam. Mas, uma vez que sabiam da minha paixão pelo Bob Marley, me liberaram”, diverte-se o líder da Blitz.

À extremo do campo, Evandro demorou a entrar. Nenhum dos jogadores, por mais cansado que estivesse, queria ceder a vaga.

Faltando uns dez minutos para o assobio final, a esfera escapuliu pela lateral, Evandro fez umas embaixadinhas e a devolveu, com estilo, para Bob Marley. “Yeah, man! Very nice!”, exclamou, sorridente, o jamaicano. “Nice to meet you, man!”, retribuiu Evandro, encabulado. “I love your music!”. “Bob Marley era lindo, gentil e maravilhoso. Um gigante, muito ali na minha frente”, derrete-se o roqueiro.

Dos “jogadores” em campo, o único profissional era mesmo Paulo Cézar Caju —na idade, ele defendia as cores do Club de Regatas Vasco da Gama. Todos os demais eram “peladeiros”. Caju, aliás, não foi o único jogador profissional a marcar presença no Politheama —Zico, Júnior e Romário, três dos mais famosos, já entortaram muitos marcadores e fizeram alguns golaços por lá.

Na hora de montar os dois times, porém, faltou jogador. Foi quando tiveram a teoria de convocar, às pressas, alguns funcionários da Ariola e até o jornalista João Luiz de Albuquerque. “Free lancer”, João Luiz fora contratado pela Ariola para grafar o oração do diretor, Marco Mazzola, apresentando a gravadora para a indústria fonográfica e a prelo.

Bom de esfera ou perna de pau?

Segundo o jornal O Orbe, de 20 de março de 1980, a “pelada” teria durado exclusivamente 20 minutos —”dadas as condições físicas dos ‘atletas'”, enfatizou o repórter.

Toquinho, um dos “craques” do jogo, nega essa versão. E, esbanjando simplicidade, acrescenta: “O melhor em campo? Ora bolas, fui eu! Joguei muito naquele dia”, afirma, formal, antes de soltar uma risadinha marota.

E o que expor de Bob Marley com a esfera nos pés? “Muito ruim”, resume o eterno parceiro de Vinícius. A opinião de Toquinho é compartilhada por Evandro. “Era valoroso, mas os jamaicanos eram meio duros”, analisa.

Carlinhos Vergueiro discorda: “Jogava muito muito”. Controvérsias à segmento, o amistoso terminou três a zero —gols de Bob Marley, Paulo Cézar Caju e Chico Buarque.

Durante a visitante de Bob Marley ao Rio, Paulo Cezar Caju realizou dois desejos do cantor: consumir peixe cru —o possuidor de um restaurante no Insignificante Leblon, muito colega do jogador, descolou uma bandeja de sashimi— e tomar suco de frutas.

“Viemos andando pela Visconde de Pirajá e paramos numa lanchonete”, recorda o jogador na biografia “Dei a Volta na Vida” (A Girafa, 2006), referindo-se a uma das principais ruas de Ipanema. “Aí, misturamos manga, abacaxi, melão e mamão e ele tomou tudo na hora”.

Um rei no Rio de Janeiro

Na quarta à noite, Bob Marley, Marvin Júnior e Jacob Miller subiram o Morro da Urca, na Zona Sul do Rio. Chegaram por volta das 22h15. “Marley chegou uma vez que um rei. Fumou baseados, tomou guaraná e ficou louco com o visual do Rio”, observou o jornalista e redactor Nelson Motta no livro “Noites Tropicais: Solos, Improvisos e Memórias Musicais” (HarperCollins, 2000).

O planeta da noite trajava calça jeans e camiseta azul. Sectário da religião rastafári, não consumiu bebida alcoólica.

A mansão de shows Noites Cariocas, no Pão de Açúcar, foi a escolhida para sediar a sarau de inauguração da Ariola. O primeiro lançamento da gravadora no Brasil foi o álbum “Um Pouco de Ilusão”, de Toquinho & Vinícius.

Entre os mais de milénio convidados, grandes nomes da MPB, uma vez que Ivan Lins, Simone e Marina. O show de Moraes Moreira começou às 23h20, com recta à participação de Baby Consuelo.

Na manhã seguinte, uma coletiva de prelo, prevista para debutar às 11h30, foi cancelada. Motivo: o voo de volta, segundo os jornais da idade, tinha sido antecipado.

Na bagagem, o planeta jamaicano levou milénio dólares em material esportivo e alguns instrumentos musicais, uma vez que cuíca, atabaque e maracas, que comprou em uma loja de Copacabana.

Houve quem especulasse que, em setembro, ele voltaria para um festival de reggae no Maracanãzinho. Festival esse que acabou não acontecendo. No dia 11 de maio de 1981, quase um ano e dois meses depois de sua visitante ao Rio, Bob Marley morreu, vítima de cancro, aos 36 anos.

Material originalmente publicada em 11 de maio de 2021

Folha

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