“O cinema morreu!” Quem me disse isso foi o cineasta Geraldo Sarno, em fevereiro de 2020, um mês antes do início da pandemia. Essa frase me perseguiu durante os 126 minutos de “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho”, novo filme da artista multimídia Bia Lessa.
A sétima arte ainda é capaz de refletir em profundidade e enviar essa reflexão ao grande público? Sarno acreditava que não e recorria a Guimarães Rosa, em célebre entrevista ao crítico boche Günter Lorenz em 1965: “Porquê noticiarista, não posso seguir a receita de Hollywood, segundo a qual é preciso sempre orientar-se pelo limite mais inferior do entendimento. Portanto, torno a repetir: não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoiévski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da perpetuidade, da solidão, onde interno e o exterior já não podem ser separados”.
O edital informa que o filme é “pisado” na obra “Grande Sertão: Veredas”. O adjetivo não é usual no cinema. Renuncia-se ao apropriado, forma mais generalidade para se referir a um filme cuja origem textual está na literatura ou em outra arte.
Espezinhado pode valer tanto reproduzido a partir de um padrão porquê também alguma coisa que foi pisado com força, acalcanhado, comprimido. “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho” vai na contramão de um manifesto cinema mercantilizado que é feito no Brasil, com linguagem universal e plácido a gêneros estrangeiros.
É um filme com potente inspiração teatral, ao mesmo tempo em que abre mão da computação gráfica para se concentrar no minimalismo de uma cenografia nua e crua. Um trabalho visual que remete tanto a “Dogville”, de Lars von Trier, quanto a “Torre das Donzelas”, de Susanna Lira.
A ópera do sertão, pelo olhar da diretora, é atravessada por uma música bruta. Feita não necessariamente por instrumentos musicais, mas por gotas, madeiras, latas. Préstimo d’O Grivo, dupla composta por Nelson Soares e Marcos Moreira, sempre em procura de uma novidade música, experimental, improvisada e atenta à paisagem.
No caso do filme, a paisagem tem arquitetura única: na frente de um fundo preto vemos uma boiada que não tem boi, vemos uma chuva que não tem chuva. Se o cinema está morto, cá temos a chance de uma ressurreição.
Enfim, a obra não termina nos créditos finais. “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho” continua vivo em diversas cidades, com intervenções artísticas, palestras, oficinas, videoartes e debates, tudo com a concepção de Bia Lessa. Uma louvável tentativa de tirar as pessoas do sofá e das redes sociais.
É curioso perceber semelhanças e diferenças entre esse filme e o outro “Grande Sertão”, dirigido por Guel Arraes. Guel, cá, é produtor associado. Bia Lessa assina roteiro e direção sozinha. O filme dela é o último capítulo de uma série de trabalhos inspirados na obra roseana.
Primeiro foi uma exposição no Museu da Língua Portuguesa. Depois, uma peça de teatro. A montagem foi sucesso de público e de sátira em várias capitais brasileiras e depois foi retrabalhada para o cinema com o mesmo elenco da peça.
A principiar por Caio Blat, que também repete o papel de Riobaldo no filme de Guel. Mas não se engane: é o mesmo ator, no mesmo personagem, com nuances muito distintas. Alguma coisa que só lembro ter visto nos diferentes Michael Corleone, interpretados por Al Pacino, na trilogia “O Poderoso Chefão”. Luisa Arraes é outra que aparece nas duas obras —no filme de Bia é a coadjuvante Nhorinhá, no filme de Guel é a protagonista Diadorim.
Os filmes de Bia e Guel estão em polos opostos do cinema brasílico, o dela intimista e o dele hiperbólico. Ambos unidos pela prosa de Guimarães e pela imensidão do sertão. É nosso grande paradoxo. Vencer o diabo e resistir à travessia. Vencer a bilheteria e resistir ao sofá.
Se para Riobaldo “o mais importante e bonito do mundo é que as pessoas não estão sempre iguais”, ainda muito que a obra de Bia Lessa nos renova. “Tem horas em que penso que a gente carece, de repente, de despertar de alguma espécie de maravilha”. O maravilha da receita fácil de Hollywood. Das ciladas do cinema mercantil de gênero. Da fabulação de um cinema brasílico feito para deleitar quem é de fora.