No ano pretérito, a sequência-legado “O Exorcista: O Fanático” tentou retomar a mítica em torno do filme de William Friedkin nos 50 anos de seu lançamento, mas tudo que o trabalho de David Gordon Green fez foi fracassar sátira e publicamente.
Mal se imaginava a vindoura estreia de outro legado, tanto mais genuíno quanto modesto, que é oriente “O Exorcismo”. A similaridade entre os títulos, principalmente em inglês, com somente a troca da última letra da vocábulo “exorcist” para “exorcism”, é supra de tudo justa.
O filme é, enfim, uma tripla exorcização: a do clássico de Friedkin, perpetuado no imaginário popular; a do protagonista vivido por Russell Crowe, varão às voltas com a tentativa de reavivar a curso de ator enquanto se recupera do vício em bebidas e drogas; e a do diretor Joshua John Miller, ele mesmo possessor de uma história pessoal diretamente conectada ao longa-metragem de 1973.
O cineasta, enfim, é fruto de Jason Miller, que interpretou o padre Damien Karras em “O Exorcista”. Ele tinha exclusivamente um ano quando o filme de Friedkin estreou, o que significa cinco décadas de sua vida em que, de certa forma, ele repassa a experiência do pai no conturbado set de um dos títulos mais rememorados de todos os tempos.
“O Exorcismo”, portanto, é um misto de exposição e acerto de contas, ainda que não se apresente tão reflexivo uma vez que pode parecer à primeira vista. É, sim, um filme metalinguístico, principalmente por ambientar boa secção da ação nos bastidores de um não dito remake de “O Exorcista” e descrever com alguns fascinantes elementos extrafílmicos, mas Joshua Miller procura organicidade nessa teia de situações e acontecimentos de forma a seu trabalho lucrar mais pelos contornos insólitos do que nas fofocas.
Assim uma vez que a matriz de 1973, “O Exorcismo” também sofreu revezes, com a diferença de que não teve força suficiente para o tranco. Com filmagens iniciadas em novembro de 2019, a produção interrompeu os trabalhos no ano seguinte por conta da pandemia de Covid-19. Por motivos vários, a retomada exclusivamente se deu em 2023. O pausa foi cruel com o resultado final, sendo o baque perceptível principalmente no desarranjo rítmico.
Ou por outra, Crowe seguiu a vida e foi fazer sucesso em “O Exorcista do Papa”, filme muito dissemelhante, mas com situações similares dele a enfrentar demônios encarnados. Com o trabalho de Miller chegando às telas só agora, ainda que iniciado antes de “O Exorcista do Papa”, fica a má e errônea sensação de transcrição oportunista.
A interrupção das filmagens serpente o preço em “O Exorcismo”, que se apresenta um tanto zopo nas várias relações estabelecidas em cena. Mais um drama de horror que propriamente história sobrenatural, o filme por vezes se força a dar sustos ou a expor graficamente momentos de tensão, uma vez que a justificar a vinculação ao gênero, quando parece bastante evidente que interessa a Miller, também roteirista, submergir mais profundamente nas angústias do alter ego de seu pai, o ator em crise encarnado por Crowe.
É na interação desse varão com a filha rebelde, nas dificuldades dele em se relacionar com o texto a interpretar no filme dentro do filme e na negação em encarar traumas incontornáveis da juventude que estão as partes mais fortes de “O Exorcismo”.
Muito se perde disso quando entram justamente situações horríficas, a interromperem o fluxo dramático em meio à gritaria e conjurações típicas de ficções com exorcistas, que têm muito pouco a oferecer se não há esforço genuíno de fazer daquilo o grande meio do relato. A parábola da expulsão demoníaca uma vez que acerto de contas faz sentido cá, mas o desequilíbrio entre as cenas não a favorece.
Apesar disso, “O Exorcismo” se sustenta na presença magnética de Crowe, que consegue gerar um personagem muito longe do padre fanfarrão de “O Exorcista do Papa”, e na perturbadora reflexão sobre abusos infligidos pela Igreja Católica a crianças e adolescentes, o que cria um diálogo inesperado entre o filme de Miller e “O Sequestro do Papa”, mais recente trabalho do italiano Marco Bellocchio.
Zero disso há de ser suficiente para fazer “O Exorcismo” ser relembrado para além de alguma curiosidade de pé de página, mas não deixa de ser um acréscimo interessante na vasta cinematografia em torno do lendário filme de Friedkin, cá resgatado por um diretor que, por vias familiares, é um de seus herdeiros.