A última ditadura a que a República brasileira foi submetida completa 60 anos no domingo. Não foi a primeira na nossa breve história republicana de baixas convicções democráticas. Meu pai, nascido em 1922, viveu sua primeira ditadura aos 15 anos, e a segunda, aos 42. Trinta anos, de 73, transcorridos sem democracia.
Eu nasci às vésperas da segunda ditadura do século pretérito. Nem havia completado um ano quando a democracia morreu da última vez no Brasil, esmagada pelas botas de generais, brigadeiros, almirantes e suas tropas. Até os 21, eu não tinha vivido um único dia neste país sob governo social, Estado de Recta, eleições livres, direitos políticos amplamente reconhecidos, essas coisas que a gente dá por garantidas uma vez que luz do sol e oxigênio.
Aliás, constatei com assombro na semana passada que faltou muito pouco para que a efeméride do início da ditadura de 1964 fosse comemorada com uma ditadura novinha em folha. Em vez de liturgicamente repetir o nosso “ódio e nojo à ditadura”, segundo a fórmula lapidar de Ulysses Guimarães, estivemos muito perto de estar celebrando uma “novidade revolução” para proteger o Brasil do “comunismo” nesse “país que vai pra frente, de uma gente amiga e tão contente”, uma vez que aprendi na doutrinação ideológica do regime militar desde a alfabetização.
Não estou descrevendo tragicamente a história de uma república em que o regime democrático aparece e desaparece a cada duas, três gerações. Na tragédia, por definição, o direcção arrasta inexoravelmente os eventos, ignorando rogos e prantos e o esforço de evitar o desfecho previsto. No drama brasílio, em vez disso, a deliberação vai em sentido contrário às virtudes republicanas. Há sempre gente tramando, urdindo, projetando e tentando pôr em marcha qualquer projeto dominador para tomar o poder sem lucrar eleições, para transformar a “res publica” em coisa pessoal, para governar sem desafiantes nem prestação de contas um povo sem direitos ou garantias, a não ser os que o governante lhe quiser conceder.
Na população social, sempre houve a suplente de vocações autoritárias, mas é nas instituições militares que o DNA autocrático está não só preservado uma vez que é ritualisticamente cultuado e doutrinariamente transmitido. O Brasil teve mais golpes e intentonas de golpes do que guerras, movimentos de tropas inimigas nas fronteiras ou tentativas de invasão do território. O inimigo é principalmente interno e atende pelo nome de democracia.
Por isso, a cada celebração pelo termo de ditaduras ou a cada suspiro de conforto porque uma intentona de golpe de Estado falhou, convém lembrar que “o micróbio da peste”, na linguagem de Camus, o vírus da brutalidade autocrática, não morre nem desaparece. É unicamente debelado provisoriamente. Permanece latente por décadas até que “chegue o dia em que, para desgraça e estágio dos homens, a peste desperte seus ratos e os envie para morrer em uma cidade feliz”.
Erra o governo ao tratar uma vez que um dia generalidade o 31 de março, o dia do último golpe de Estado bem-sucedido neste país em que a democracia parece frágil, provisória e incompleta. Ainda mais quando a população acabou de saber que o seu último presidente, o círculo íntimo dele e uma segmento da escol militar arquitetaram e tramaram um golpe que, por riqueza, não se completou. Falhou, mas não por falta de tentativa.
Deixar passar em branco os 60 anos do golpe de Estado que tão duramente marcou a vida do país não faz sentido. Nem que fosse um ritual, com velas acesas, uma vigília, um lamento, 60 segundos de silêncio, uma leitura da lista dos mortos e desaparecidos, uma verso, um pintura, um memorial, qualquer coisa. É importante lembrar ao país que não temos o recta de olvidar, muito menos de repetir. Se há os que preservam o micróbio da peste autoritária e os que cultuam botas e baionetas supra da República, também os democratas precisam de uma ritual em que se celebre um regime de direitos e liberdades, também os republicanos carecem de um reforço nos anticorpos que combatem a autocracia no sistema imunológico das instituições do país.
Esta país merece um horizonte em que governos civis não tenham que se preocupar se as Forças obedecem a uma constituição democrática, tramam mais um golpe, reconhecem ou não que servem à República e ao poder social. A relação precisa é ser republicana, não concessiva. E será harmoniosa não porque silenciamos sobre ditaduras, mas quando os militares alinharem sua bússola ao regime democrático sob o qual escolhemos viver.
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