O Que é Poesia?; Leia Texto De Antonio Cícero

O que é poesia?; leia texto de Antonio Cícero – 23/10/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Em 2010, o poeta Antonio Cícero, que morreu nesta quarta-feira aos 79 anos, publicou na Folha o texto ‘O que é trova?’.

Nele, Cicero discute a natureza da trova , destacando que Edson Cruz perguntou a 45 poetas ‘o que é trova?’, resultando em respostas variadas e um livro. Ele reflete que a trova é o que faz um poema ser um poema, caracterizando-se por um cimeira intensidade de escritura.

Confira, inferior, a íntegra:

O que é trova?

O POETA Edson Cruz perguntou “O que é trova?” a diversos poetas. 45 responderam. Cada um deu uma resposta dissemelhante, embora não necessariamente incompatível com as dadas por cada um dos demais. A pergunta era na verdade um pretexto para pensar sobre a trova. O resultado se transformou num livro.

Eu mesmo participei do livro e recentemente, ao reler o que lá dissera, lembrei-me que já havia respondido a essa pergunta de outros modos. Por exemplo, supondo que a trova é aquilo que faz de um poema um poema, escrevi uma vez que ela consiste no intensidade de escritura de um texto. A teoria é que um poema (muito) realizado é um texto dotado de um altíssimo intensidade de escritura.

Isso supõe que alguns escritos são mais escritos do que outros. Digo isso tendo em vista algumas das mais importantes características do oração escrito, em oposição ao vocal. Abstraindo dos modernos meios de gravação de voz, considero evidentes as seguintes três proposições:

1. Enquanto o oração vocal é efêmero, o oração escrito tem uma permanência indefinida;

2. enquanto o oração vocal é fluido e acessível, isto é, está sempre em movimento, uma vez que a vida, e sujeito a mudar a todo momento, o oração escrito é fixo e fechado, e não é sujeito a mudança;

3. enquanto o oração vocal se realiza ou se concretiza plenamente quando falado, o oração escrito se realiza ou se concretiza plenamente quando lido.

Pois muito, embora todo oração tenha uma permanência indefinida, não a tem na mesma medida. A permanência de um rascunho, por exemplo, ou de um bilhetinho, ou de um torpedo, ou de uma mensagem de celular, ou de um memorando não costuma ser muito grande. É assim quase tudo o que se escreve e não se publica.

Mas é também assim quase tudo o que se publica. Os jornais são guardados nas bibliotecas e nos arquivos, mas quem os lê senão, de tempos em tempos, um historiador? Um texto que não é lido não se concretiza plenamente. Ora, esse é o orientação não só dos periódicos, mas, de modo mais inexorável ainda, de 99,9% dos livros. Assim, no que diz saudação à primeira propriedade do oração escrito, que é a da permanência, entra em jogo a sua terceira propriedade, que é a de se concretizar ao ser lido. A mera permanência física de um livro está longe de valer a permanência plena ou concreta do seu texto.

Já a qualidade de ser fixo e fechado parece, à primeira vista, ser compartilhada também por todos os textos, enquanto duram. Na verdade, porém, não é muito assim. Posso, por exemplo, considerar os rascunhos de um poema meu uma vez que as transformações pelas quais ele passou antes de permanecer pronto.

Se eu fotografasse cada uma dessas transformações, fizesse slides dos fotogramas, colasse uns nos outros uma vez que numa fita de cinema e pusesse essa fita num projetor, creio que veria o poema a se mexer uma vez que se fosse um ilustração entusiasmado. Ele pareceria, logo, fluido uma vez que uma fala; e, caso se tratasse de um poema ainda não terminado, de modo que eu continuasse a somar fotogramas a essa fita, ele pareceria também acessível uma vez que uma fala.

Os textos que dizem coisas de caráter prático ou mesmo cognitivo, tais uma vez que os textos técnicos e científicos, são mais ou menos assim, abertos e fluidos, pois, caso contrário, o que dizem acaba por deixar de ser verdadeiro, de modo que eles se tornam obsoletos e deixam de ser lidos, isto é, deixam de se concretizar. Assim também enciclopédias ou dicionários mantêm-se vivos porque são atualizados por novas edições.

Os textos que não estão sujeitos a esse tipo de descartabilidade são aqueles dos quais valor -atenção: neste ponto, não há uma vez que não empregar juízos de valor- não depende de serem verdadeiros ou falsos. Assim são os textos literários que, valendo por si, pertencem antes à ordem dos monumentos do que à dos documentos. É logo que as Musas de Hesíodo se orgulham de saber “manifestar muitas mentiras parecidas com a verdade”.

Pois muito, dentre os textos literários, que valem por si e são os mais escritos dos escritos, os mais escritos de todos são os poemas. Por quê? Porque consistem em formas puras. No limite, não há, neles, diferença entre o que dizem e o modo uma vez que o dizem. Uma vez que não se pode, num poema, separar o significado do significante, a rigor não se pode manifestar em outras palavras o seu significado. É por isso que, no que diz saudação a um poema, parece-me em universal menos propício falar de “tradução” do que, uma vez que dizia Haroldo de Campos, de “transcriação”.

Folha

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