'o Segundo Ato' Propõe Direção E Roteiro Feitos Por Ia

‘O Segundo Ato’ propõe direção e roteiro feitos por IA – 06/11/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Em “O Segundo Ato”, duas figuras se superpõem: a do ator e a de seu personagem. O que leva a pensar, de repentino, que o filme de Quentin Dupieux é devotado a seus atores, ou ao ofício de ator que eles cá representam.

A ação se abre com um uma longa cena, um longo travelling em que conversam David (Louis Garrel) e Willy (Raphaël Quenard), enquanto vão ao encontro com uma moça que está interessadíssima em David, mas não é correspondida. David pede ao colega que jogue um charme sobre a moça e a seduza. Willy teme entrar numa roubada. O que teria de inverídico essa moça para David fazer tal pedido? Será feia? Não. Será transgênero? Terá problema neurológico ou coisa assim? Willy começa aí a entornar um ideário muito machista, que parece repugnar a David.

Mas será que Willy é Willy? Ou será o personagem do filme que estão rodando e eles ensaiam seus papéis? É nesse desdobramento de ator em personagem e vice-versa que “Segundo Ato” evolui.

Na cena seguinte estão Florence (Léa Seydoux) e seu pai Guillaume (Vincent Lindon). Florence está ansiosa porque pretende apresentar a Guillaume aquele que julga ser o varão de sua vida, David, justamente. O mesmo ritual se repete: depois de um tempo sabemos que eles também são atores que estão fazendo um filme, o mesmo filme.

A arte de Dupieux consiste em fazer dessa geminação um jogo interessante, que de certa forma nos coloca diante do que é ser ator, isto é, de todo o tempo assumir uma segunda personalidade uma vez que se fosse a sua. Parece óbvio, mas fazer isso com humor não é tão simples assim: é uma vez que se estivesse torcendo e depois destorcendo os seus personagens, que se desdobram e interagem nos dois níveis, no do ator e no do personagem.

Mas quem é quem? Depois de qualquer tempo as duas personas se confundem —tanto mais que o filme é “escrito e dirigido por IA”, ou seja, perceptibilidade sintético, dispensando a presença de técnicos humanos nas redondezas. Logo, passada a tensão inicial sobre quem é quem, o testemunha pode se entregar a esse jogo sem constrangimento e, enfim, rir, porque se trata de uma comédia.

No entanto, e David vai expor o que talvez seja a teoria medial do filme, trata-se de discutir o real e o figurado. Ou, mais especificamente, essa qualidade de um invadir o outro: de nossas fantasias serem tão reais quanto as coisas concretas. O teatro e o cinema, sobretudo o cinema, são lugares onde se entrelaçam essas instâncias, onde se espelham, e o humor suave que o filme transmite dá conta dessa qualidade do humano com desenvoltura e sem se dar maior relevância: talvez sejamos seres suspensos entre ficção e verdade.

Nessa equação sobressai, evidentemente, o ator; evidência dessa duplicidade. E o mínimo a expor é que, do primícias ao término, o quarteto medial de atores responde muito muito ao que lhes é pedido. No mais, diálogos que colocam em questão misoginia, racismo, machismo, etc, mostram-se tão mais pertinentes quanto evitam tratar essas palavras —ou o que elas subentendem— com a sisudez excessiva que arruína com frequência causas justas.

Se filosofa sem recorrer ao filosofês, “Segundo Ato” transmite uma vitalidade sem afetação, um pouco que lembra os tempos da nouvelle vague —aquele descompromisso com “a arte” que fez dela um movimento artístico tão medial. A vitalidade que se sente em Dupieux, de que faz segmento o prazer com que tudo parece ser feito, inclusive a atuação dos atores, pois é ao ator que o filme entroniza uma vez que meio do filme (e talvez do cinema).

Curioso notar que o filme de Dupieux está na mesma chave do prateado “O Que Queríamos Ser”, de Alejandro Agresti. Leste último foi o filme que mais me impressionou na 48ª. Mostra Internacional de São Paulo. Desenvolve uma teoria similar, mas envereda mais para o fantástico (à voga argentina, aliás), na medida em que os dois personagens que ali se encontram desenvolvem um jogo curioso de só se apresentarem ao outro uma vez que um ser inventado. E tudo segmento da discussão sobre se o ator se despersonaliza à custa de desenvolver dentro de si tantas personalidades fictícias.

São assuntos muito atuais: o que somos e o que representamos, o que queremos ser e o que somos. Parece que no século 21 também as identidades se repartem, se estilhaçam e pedem para ser novamente expostas. Se não é um problema filosófico e certamente um belo problema artístico.

Folha

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