Obra De Lina Bo Bardi Em Ruínas Será Museu Em

Obra de Lina Bo Bardi em ruínas será museu em Salvador – 06/09/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

A ladeira da Misericórdia, uma das mais antigas do núcleo histórico de Salvador, esconde uma obra radical, pouco conhecida e nunca inaugurada da renomada arquiteta Lina Bo Bardi, responsável pelo ilustração icônico do Masp, o Museu de Arte de São Paulo.

Desenhado a partir de 1986, o conjunto da ladeira da Misericórdia é constituído por três casarões transformados em moradia para baixa renda, com pequenos comércios e serviços no caminhar térreo a serem tocados pelos moradores.

Também integram o multíplice um bar, um belvedere e o restaurante Coatí, ou Coaty, construído em torno de uma mangueira que já existia no lugar e que atravessa o prédio, abrindo sua despensa sobre o terraço imerso na paisagem superabundante. Na segmento interna, a arquiteta desenhou um palco ao volta do tronco, onde imaginava um dia observar a uma apresentação de João Gilberto.

Nesta sexta-feira, a prefeitura soteropolitana anunciou a retomada desse projeto em parceria com a Associação Cultural Pivô e com a bênção do Instituto Bardi, fundado em 1990 para preservar o legado do par Pietro Maria Bardi e Lina Bo Bardi.

Uma permissão de uso do espaço por dez anos foi assinada com o Pivô, instituição de compromisso público sem fins lucrativos. Fundado em 2012, o Pivô ocupou e abriu ao público um espaço residual na sobreloja do prédio Copan, de Oscar Niemeyer, transformado em núcleo interdisciplinar de arte e cultura contemporânea num contexto de intensa degradação daquele trecho do núcleo histórico de São Paulo.

Ao longo dos anos e de 150 projetos, entre exposições, programas públicos, publicações e residências artísticas, o Pivô viu seu entorno ignorado dar lugar a uma série de bares e restaurantes e uma livraria, a Megafauna. A teoria é promover movimento semelhante no núcleo da capital baiana.

“O projeto de Lina para a ladeira da Misericórdia representa o microcosmo de uma estratégia de desenvolvimento sustentável e de reocupação do núcleo histórico”, afirma Pedro Tourinho, secretário de Cultura e Turismo de Salvador.

Entre os parceiros institucionais do Pivô estão a curadora Lissa Carmona, embaixatriz do Instituto Bardi, a editora Fernanda Diamant, sócia da livraria Megafauna e da editora Fósforo, e o gestor Lucas Pessôa, ex-presidente do Instituto Inhotim, em Minas Gerais, e ex-diretor do Masp.

Pessôa, anos detrás, fez uma tentativa de ocupação, cujos estudos geram o experiência fotográfico do artista Mauro Restiffe que ilustram esta reportagem e agora se juntam à atual retomada.

Talvez zero disso tivesse sucedido se, no ano pretérito, o Pivô não tivesse inaugurado uma novidade sede em Salvador, num casarão histórico, causa da tropicália, e que hoje funciona uma vez que uma plataforma pesquisa e intercâmbio artístico.

“O Pivô será a caixa de ferramentas da retomada da ladeira da Misericórdia”, afirma Fernanda Brenner, fundadora e diretora artística da instituição. “Ocupar esse espaço é dar ininterrupção ao DNA da instituição: retomar e perfurar espaços arquitetônicos históricos para o público, sempre de forma gratuita, e juntar cultura contemporânea com patrimônio histórico e pensamento artístico.”

A experiência uma vez que núcleo de pesquisa e experimentação artística do Pivô reflete o que Brenner labareda de “momento invisível de um projeto de arte”, quando ocorrem os intercâmbios e pesquisas, o desenvolvimento de processos e as residências artísticas. Esse paradigma, aplicado ao contexto baiano, também será voltado para o fortalecimento de vínculos com a África Ocidental.

Hoje, por entre a mata da encosta da ladeira, sobre as muralhas que remontam à instauração de Salvador uma vez que primeira capital do Brasil, em 1549, é verosímil ver as estruturas cilíndricas de argamassa armada erguidas para acoitar o restaurante e rasgadas por janelas irregulares, semelhantes às do Sesc Pompeia —projeto premiado que a italiana naturalizada brasileira havia recém-concluído. Ali, no entanto, a vista é para a baía de Todos os Santos.

O multíplice surgiu uma vez que projeto-piloto de um ávido protótipo de recuperação do núcleo histórico da capital baiana elaborado por Bardi e pelos arquitetos Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki, com colaboração de João Figueiras Lima, o Lelé, a invitação do logo prefeito de Salvador, Mário Kertész.

Unia o restauro do patrimônio histórico em escombros a partir de tecnologia industrial à requalificação dos casarões por meio de habitação popular, trabalho e cultura. Concluído em 1990, ainda era construção e já era ruinoso.

Ermo de súbito e depredado ao longo de anos, o conjunto da ladeira da Misericórdia conviveu com invasões e pilhagens que sumiram com o mobiliário desenhado e executado pelos arquitetos, e com quase tudo o que poderia ser removido dali.

Ao mesmo tempo, o lugar foi sede do restaurante Zanzibar por alguns anos, depois objectivo de projetos e ocupações artísticas que denunciavam a degradação e buscavam revelar a relevância do projeto de Bardi, sem conseguir mudar o rumo dos espaços.

“É uma experiência que custou numerário público e trabalho importante de uma arquiteta hoje reconhecida mundialmente. E nunca mais conseguiram fazer zero ali”, diz Ferraz, que prepara um livro de memórias sobre o trabalho ao lado de Bardi previsto para ser lançado ainda neste ano pela editora Martins Fontes.

O formato de moradia social com transacção deveria ser replicado em 42 quarteirões do núcleo histórico, segundo o programa original, mas ficou restrito à ladeira da Misericórdia, hoje fechada por grades que impedem a circulação entre Cidade Subida e Cidade Baixa pela via histórica por questões de segurança.

“Foi tão triste que Lina começou a permanecer mais doente, mais deprimida. Com o desistência desse projeto, Lina começou a morrer”, afirma Ferraz. A arquiteta morreu dois anos depois, em 1992.

A atual retomada de seu projeto joga luz no encontro transformador da arquiteta com o Nordeste do país e seu patrimônio africano por meio da Bahia.

Dividida em dois atos, essa história começa em 1958, quando Bardi chega a Salvador para dar aulas na Universidade Federalista da Bahia e estabelece relações com artistas e intelectuais com quem colabora intensamente até o golpe de 1964. Entre eles, estão os antropólogos Pierre Verger e Vivaldo da Costa Lima, o cineasta Glauber Rocha, o estatuário Mário Cravo Júnior, o diretor teatral Eros Martim Gonçalves e o pintor Carybé.

“Foi nesses primeiros anos na Bahia que Lina formula uma teoria medial em sua vida, a noção de pré-artesanato”, afirma o arquiteto Francesco Perrotta-Bosch, biógrafo da arquiteta.

Bardi viajou pelo sertão baiano, onde acompanhou filmagens de “Deus e o Diabo na Terreno do Sol”, de Glauber, e ficou impressionada com utensílios do cotidiano miserável convertidos a partir de objetos normalmente destinados ao lixo —canecas feitas com latas, bules e lamparinas produzidos com embalagens vazias e que exibiam seus logotipos, mas não eram pop art.

“Era uma produção autenticamente brasileira, que não copiava modelos internacionais industriais e que foram ponto de partida de Lina para um projeto de desenvolvimento do Brasil”, diz Perrotta-Bosch, que destaca uma troca de cartas da arquiteta com o economista Celso Furtado sobre o ponto.

Os círculos paulistanos de arte e notícia a conduziram para a direção do Museu de Arte Moderna da Bahia em 1959, enquanto trabalhava no projeto do Masp, numa ponte aérea entre o Hotel da Bahia, seu endereço em Salvador, e a famosa Morada de Vidro do par Bardi, no Morumbi, em São Paulo.

Dona Lina, uma vez que era chamada na Bahia, também projetava o resgate do Solar do Unhão, um multíplice industrial do século 17 à praia, para acoitar o Museu de Arte Popular e o que seria o Núcleo de Estudo e Trabalho Artesanal.

O projeto do solar acabou se firmando uma vez que MAM da Bahia, contrariando a proposta de Bardi, numa série de reviravoltas e embates com a escol provinciana de Salvador que culminaram com a saída da arquiteta da cidade. A pingo d’chuva, lembra Perrotta-Bosch, foi uma exposição sobre materiais ditos subversivos imposta ao museu pelo novo governo, já sob ditadura militar. Bardi pediu exoneração.

Esse desfecho fez do retorno da arquiteta à Bahia nos anos 1980, ao qual ela resistiu, uma operação de conquista e acolhida. Depois de inúmeras recusas dela, o prefeito Kertész e seu secretário de projetos especiais, o antropólogo Roberto Pinho —que havia se deslumbrado em visitante ao Sesc Pompeia—, atraíram Bardi a Salvador com uma honraria.

A Comenda Dois de Julho, antes cedida unicamente a Gilberto Gil e Dorival Caymmi, foi oferecida a Bardi uma vez que um “ato de justiça”, em cerimônia no Hotel da Bahia com plateia lotada, enxurrada de rostos conhecidos da arquiteta, numa saudação. “Foi o grande prêmio que Lina recebeu em vida”, diz o biógrafo.

Emocionada, Bardi foi levada para um giro pelo núcleo histórico devastado e se comoveu. Os edifícios pareciam ter sofrido um “terremoto voluntário”, disse ela, que associou essa paisagem soteropolitana de ruínas habitadas pelos mais pobres às cidades italianas que viu bombardeadas durante a Segunda Guerra Mundial.

Sob esse impacto, Bardi não conseguiu mais recusar o novo invitação para resgatar aqueles espaços.

“O projeto da ladeira está inserido numa mediação maior em Salvador, com trabalhos feitos por Lina, Suzuki e eu na Morada do Benin, na Morada do Olodum e no Teatro Gregório de Mattos”, afirma o arquiteto Ferraz. “A ladeira da Misericórdia é o mais importante desses trabalhos, não só pela sua posição e visibilidade, mas também porque era o piloto de um experimento de mediação social e no patrimônio histórico.”

Bardi desenvolveu as placas de ferro-cimentício pré-fabricadas com Lelé, o arquiteto responsável por obras em outras partes da cidade. Enviou para o colega uma folha de capim-palmeira do quintal de sua Morada de Vidro numa caixa. O ilustração plissado das folhas foi convertido no zigue-zague das placas que dão movimento às construções.

A teoria era fabricar um protótipo rápido e econômico de mediação. A teoria era preservar o que não havia tombado, segurando as paredes com contrafortes de concreto pré-fabricados que não escondiam a atualidade do projeto. E prometer habitação de qualidade para a população pobre que mantinha a vida cotidiana num território com potencial para o turismo e sua especulação.

“Queriam mandar os moradores para o subúrbio e colocar gente de outros lugares por lá. Não concordei. Deixei a moradia e a lojinha dos moradores na ladeira. Não gostaram”, declarou a arquiteta a nascente jornal em 1991. “Na Itália, por exemplo, estragaram toda a Ligúria com esse negócio de fazer coisas para o turismo”, disse ela, para quem essa lógica tornava tudo alguma coisa vulgar.

“Seu projeto era evitar que Salvador se convertesse em uma ‘cidade sorvete’, uma vez que dizia. Lina estava preocupada com o que via em Roma ou Veneza, onde os moradores estavam sendo jogados para fora das cidades para a chegada de uma classe subida internacional”, afirma Perrotta-Bosch, responsável de “Lina: Uma Biografia” (Todavia).

A vizinhança da ladeira da Misericórdia hoje abriga hotéis de luxo, uma vez que o Fasano e o Fera Palace. Um núcleo gastronômico, com loja de joias e galeria de arte, restaurou e ocupou o Palacete Tira-Chapéu, enquanto o Palácio Rio Branco, que já hospedou a família real portuguesa, será convertido em uma unidade baiana do hotel de luxo Rosewood, projetado pelo galicismo Philippe Starck.

Do lado do poder público, um Núcleo Cultural Banco do Brasil foi anunciado no Palácio da Saudação, uma escola de música e arte homenageará o maestro Letieres Leite no pé da ladeira da Misericórdia no ano que vem, e programas de moradia popular serão financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, segundo a prefeitura.

“Não é por eventualidade que o projeto da Lina vai se materializar agora também, destravando uma visão de núcleo histórico, que é um duelo em todo o mundo, e também um processo terapêutico”, avalia Tourinho, o secretário da Cultura.

O contexto atual do núcleo histórico de Salvador e da ladeira da Misericórdia atualizam um renomado pensamento de Lina. “Na prática não existe o pretérito. O que existe ainda hoje e não morreu é o presente histórico”, dizia a arquiteta. “O que você tem que salvar —aliás, salvar não, preservar— são certas características típicas de um tempo que pertence ainda à humanidade.”

Folha

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