Paris prometeu, Paris entregou. A cerimônia de exórdio das Olimpíadas 2024 entrou para a história porque seus organizadores partiram de um pensamento iluminado: não valia a pena fazer a sarau num estádio se eles têm a cidade mais formosa e o rio mais charmoso do mundo.
O diretor artístico Thomas Jolly começou lentamente e depois foi subindo a barra. O início deu um visível terror –a exórdio com os jatos de chuva nas cores da bandeira da França pareceu simples demais, e logo começou o desfile das delegações nos barcos.
Nos primeiros minutos, a sarau trouxe aquela ração de clichês franceses pra turista ver: o acordeonista de boné tocando na ponte, Lady Gaga esplendorosa num Dior em preto e rosa evocando o Moulin Rouge e os shows de teatro de revista que atraem turistas até hoje.
Também deu um visível indiferente na ventre a insistência nos tons de rosa nessa primeira segmento. Parecia que Jolly queria só ter seu dia de Greta Gerwig, fazendo sua própria versão de “Barbie” em plenos Jogos Olímpicos. Mas felizmente esse foi só o primeiro ato.
Aos poucos, a França branca foi sendo deixada de lado em prol da pluralidade –um belo tapa na face da extrema-direita de Marine Le Pen. Uma gaiato de feições árabes começou carregando a tocha pelos esgotos de Paris. Um rápido número fez uma justa homenagem à reconstrução da Catedral de Notre Dame, com bailarinos em meio aos andaimes.
Em meio aos barcos com as delegações, o Brasil já conquistou o seu primeiro pódio, porquê uma das delegações mais mal vestidas e mais desanimadas. O uniforme que mais parece uma roupa de missa só tomou paulada desde que foi apresentado e conseguiu a proeza de fazer do Brasil –justo do Brasil– uma delegação menos vibrante que as do Canadá e da China. Só deu match com a desmaiada delegação de Botsuana, que veio logo antes.
Alguns momentos poderosos fizeram a união inusitada de tradição e modernidade, lembrando que a França não é só terreno de passados e museus. Um número catártico lembrou a Revolução Francesa com Maria Antonieta decapitada ao som da margem de metal Gojira, seguida da famosa ária da ópera “Carmem” de Bizet na voz da suíça Marina Viotti.
Em outro momento, a malinesa Aya Nakamura, cantora em língua francesa mais ouvida do momento, fez um número digno de Beyoncé e botou uma margem militar enxurro de homens brancos pra dançar. Um vídeo com três jovens na Livraria de Paris lendo clássicos de Maupassant, Verlaine e Leila Slimani terminou com os três… num triângulo amoroso a portas fechadas –sim, o “ménage à trois” também é patrimônio francesismo. Depois de uma Santa Ceia “drag”, um rápido desfile de voga reuniu diversas etnias.
Toda essa bela salada lembrou que a França é a terreno da liberdade, paridade e fraternidade, mas também da solenidade, da pluralidade e da sororidade. Esta última apareceu num belo momento em que a cerimônia fez justiça a grandes feministas, artistas e pensadoras da França, com estátuas que subiam em homenagem a Olympe de Gouges, Gisèle Halimi, Louise Michel, Simone Veil, Alice Guy e Paulette Nardal, a primeira mulher negra a ingressar na Sorbonne.
Esse vaivém entre o velho e o novo, o tradicional e o moderno marcou toda a cerimônia. Uma animação com os Minions que terminou com a Mona Lisa boiando no Sena foi emendada com o quina da Marselhesa, o hino francesismo, do cimalha de um dos prédios. Aliás, foram muitas as performances do cimalha dos telhados de Paris, incluindo a figura mascarada que arrasou no “parkour” por toda a cidade.
Com a noite instalada, a última segmento foi de pura sarau, com bailarinos explodindo na passarela de uma das pontes superiluminadas, ao som de um pot-pourri de músicas dance e techno. Foi menos inspirado, mas manteve o astral lá em cima. Juliette Armanet e a pianista Sofiane Pamart cantaram “Imagine” de John Lennon com um piano de rabo em chamas. O mascarado riscou o Sena montado num cavalo de metal com a ajuda de um submarino, numa visão espetacular.
Para seguir os “barcos alegóricos” dos 206 países que fizeram o Sena ter seu dia de Sapucaí, zero melhor do que os comentários de Milton Cunha na Cazé TV. Milton deu pitaco desde a “lancheca” minúscula do Bahrein até o “barco-formigueiro” com a delegação francesa, confessou que “já conheceu alguns homens da Micronésia” e tombou o desfile de voga porquê “mequetrefe”, entre outros comentários jocosos.
Atrapalhando um pouquinho, a chuva apertou bastante na segunda metade da sarau, e fez temer pela saúde dos atletas que vão competir nos próximos dias. Será que teremos atletas tombados porque a goto fechou no meio do Sena? Oremos.
Na reta final, foi comovente ver a reunião de um Quarteto Fantástico numa lancha a século por hora em direção à Pira Olímpica: a ginasta romena Nadia Comaneci, a tenista americana Serena Williams, o tenista espanhol Rafael Nadal e o galeria americano Carl Lewis, vencedor de dez medalhas olímpicas. Confirmando as expectativas, a velocista francesa Marie-José Perec acendeu a Pira, mas acompanhada do judoca francesismo Teddy Riner –um par de atletas negros, dando o toque final de pluralidade à cerimônia.
Coroando tudo, Céline Dion, que não cantava em público há muito tempo por conta de sua doença, encarnou Édith Piaf na voz e no gestual –nenhuma cantora francesa teria feito melhor– no coração da Torre Eiffel. Paris sempre foi uma sarau, mas desta vez se superou.