Fosse o resultado das eleições legislativas diferentes, a cerimônia de lhaneza dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 teria sido um grande anticlímax. O espetáculo não poupou esforços em imprimir a imagem de uma França universalista, acolhedora e republicana, bastião em riste dos preceitos que fundaram o país —de volta ao debate público no último pleito pátrio.
Sob chuva incessante, o maior bemol da cerimônia, a França exibiu ao mundo um show justo, sem exageros nem invencionices, uma vez que um bom prato de steak tartare. Foi uma combinação de clássicos e novidades, ao menos aos olhos do mundo, que diferem de uma teoria tosca-kitsch de cultura francesa, uma isca que só funciona uma vez que prato no Paris 6.
A cerimônia abriu com elementos incontornáveis da formação do mito parisiense, a cidade do paixão. Acordeons tocando a musette, dançarinos de cancan do Moulin Rouge e Lady Gaga cantando “Mon Truc en Plumes”, sucesso dos anos 1950 na voz de Zizi Jeanmaire com ares de swing jazz e exotica, foi o lugar mais geral do espetáculo.
Deixar para o final “Hino Ao Paixão”, na voz de Céline Dion, cantando sobre a Torre Eiffel, foi uma forma de unir um país sob polarização política. Nascida no Quebec, enclave francófono na América do Setentrião, Dion é uma unanimidade na França com suas músicas que tocam em casamentos e fins de sarau do país.
Nos Jogos Olímpicos, coube a ela justamente fechar a sarau num orgasmo que marcou também um breve retorno seu aos palcos, de onde está afastada desde 2022, quando recebeu o diagnóstico de síndrome da pessoa rígida.
Vindo de terreno neutro, dialogando com as margens esquerda e direita do Sena, Céline Dion brindou o mundo com uma saída, ainda muito, zero à francesa.
Ao longo da cerimônia, o primeiro choque veio com a filarmónica Gojira, um dos maiores nomes do heavy metal, tocando um dos hinos da Revolução Francesa, “Ah Ça Ira”, ao lado da cantora Marina Viotti. A França tem um dos maiores festivais de metal do mundo, o Hellfest —somente uma das surpresas do país guardadas embaixo dos estereótipos de croissant e macaron.
Outro momento de impacto ficou com a cantora Aya Nakamura. Franco-malinesa, negra, a artista estava cotada para trovar Edith Piaf durante a cerimônia, boato que gerou controvérsia entre Macron e o RN. Marine Le Pen afirmou que, caso se confirmasse o ato, levaria a questão à câmara pátrio.
Nakamura não tocou no cânone gaulês, mas apresentou-se ao lado de um grupo da guarda republicana tocando seus dos principais sucessos: “Pookie” e “Djadja” —canções pop com levada afrobeats, um pouco que destoava da caixaria militar. A popstar foi seguida pela mezzo-soprano Axelle Saint-Cirel, cantora também negra de Guadalupe que entoou o hino gaulês, “La Marseillaise”.
Ponto também cimo da seção de música de câmara foi o medley do pianista Alexandre Kantorow, um dos maiores nomes no seu instrumento. A chuva sobre a rabo do piano deixou a performance de compositores franceses, uma vez que Satie, Ravel e Debussy, ainda mais cinematográfica.
A música eletrônica também teve seu espaço, embora não uma vez que protagonista. DJs e produtores franceses de sucesso não subiram ao palco, mas suas músicas foram trilha sonora de boa segmento do desfile das nações: Cassius, Stardust, Justice foram alguns dos artistas ouvidos nas beiras do Sena.
A exceção nos toca-discos ficou por conta de Barbara Butch, DJ que comandou a pista de dança francesa celebrada uma vez que espaço de variação. Drag queens, pessoas com deficiência, vogue, ballroom, manifestações e corpos díspares tiveram um espaço de destaque capaz de eriçar o cabelo dos mais carolas.
O desfile das nações e os desfiles de tendência, em vídeo ou sobre o Sena, também abraçaram a música moderna e popular francesa. O catálogo de sucessos radiofônicos tinha nomes uma vez que Claude François, Johnny Halliday e Compagnie Créole, na versão “Kassav” —um gesto à música do Caribe gaulês que poderia ser mais significativo.
Quem poderia ter tido mais sentença também foi o rap. Aquém da potência do hip hop do país, a apresentação do Rim’K, nome importante do rap gaulês da segunda geração, foi inócua. O rapper podia ter tocado “Tonton du Bled”, sucesso do termo dos anos 1990 com levada de raï, gênero que ganhou a França junto com a diáspora norte-africana naquela dez.