Em uma comunidade da Baixada Fluminense, uma atriz frustrada tem uma relação conturbada com a filha, herdada de sua mãe idosa. Na periferia de Londres, uma jovem parece mais adulta que o pai e mãe. Às margens do rio Amazonas, duas meninas resistem a um envolvente moldado pelo ataque sexual.
Em generalidade, todas essas narrativas se debruçam sobre seios familiares disfuncionais e passados turbulentos para exorcizar os comportamentos de seus protagonistas. As histórias amargas, mas observadas por um olhar quebradiço, compõem alguns dos filmes mais tocantes exibidos nessa edição do Festival do Rio, que ocorre até domingo.
É o caso de “Malu”, de Pedro Freire, um retrato da mãe do diretor, a atriz Malu Rocha. Longe de querer ser uma biografia, o filme começa com uma visitante de Joana, filha que passou anos na França, à mãe. Atriz de teatro promissora em sua juventude, Malu vive em uma comunidade carioca com a frustração de sua curso não ter vingado —seja pela asfixia dos teatros paulistas durante a ditadura, pela maternidade ou pelo eventualidade.
A relação de Malu com Joana varia entre silêncios gritantes e brigas explosivas, similares àquelas de Malu com sua própria mãe, a conservadora Lili, que vive na mesma morada. Castrada e traumatizada pela dominância masculina em sua juventude, a idosa parece descontar na filha as lições amargas.
“Praticamente todos os diálogos do filme aconteceram na vida real”, diz Freire, que remete a elementos da literatura de autoficção. Joana, por exemplo, não existe, mas é uma “amalgama” de próprio diretor e de sua mana, Isadora. Curiosamente, ele só percebeu que o filme se tratava de conflitos geracionais posteriormente o término do roteiro.
A repressão masculina também é a nascente do traumatismo em “Manas”, de Marianna Brennand Fortes, premiado no Festival de Veneza. O filme conta a história de Marcielle, ribeirinha de 13 anos que tem sua puerícia interrompida pelo ataque sexual, um tanto quase sistemático em sua comunidade. Filmado com a delicadeza pedida pelo tema, o longa passa todo o peso da situação sem mostrar nenhuma cena de estupro —mas pelos olhares e movimentos da rapariga, e sua interação com a familia.
Já “Entrelaços”, novo filme de Fernando Grostein Andrade e Fernando Siqueira, mistura documentário e músico para destrinchar os efeitos psicológicos desse tipo de problema na mente humana. “O traumatismo é a antítese da conexão. As pessoas que sofrem ataque físico, moral ou sexual, uma vez que foi seu caso, perdem o recta à ingenuidade. O que acontece são pensamentos recorrentes, que ficam voltando ao longo da vida, e você fica recluso em uma espécie de labirinto.”
“The Outrun”, estrelado por Saoirse Ronan e dirigido por Nora Fingscheidt, conta a jornada de Rona, que volta para a sua cidade natal, na Ilhas Orkney, no extremo setentrião da Grã-Bretanha, para tentar se manter sóbria.
O longa dá pistas, por meio de flashbacks, de uma vez que a protagonista teria desenvolvido o alcoolismo. As lembranças são permeadas pelo isolamento da paisagem gélida à exiguidade do pai bipolar, que quando presente tinha crises violentas acompanhadas de alucinações.
Para além do enfrentamento às lembranças ruins, o longa propõe a convívio com elas por meio da aproximação de Rona com o ecossistema peculiar da região, formado por icebergs, cabras e pássaros em extinção.
A metáfora do pássaro reaparece em “Bird”, filme de Andrea Arnold que competiu pela Palma de Ouro em Cannes. O “coming of age” —filme que explora o maduração de um personagem— acompanha Bailey, de 13 anos, que vive com o irmão e o pai, Bug, interpretado por Barry Keoghan.
Bug foi pai quando ainda era menor de idade e, já adulto, parece mais jovem que a própria Bailey. Enquanto não tem muita atenção em morada, ela anda com uma pequena gangue de jovens e vive preocupada com a mãe, que mora com um namorado violento. A rotina repetitiva e sem propósito muda quando ela faz amizade com o excêntrico Bird, jovem que volta à cidade em procura de seus pais.
Em todas as histórias, fatores sociais impulsionam convivências precárias. “O mundo está passando por uma crise de saúde mental, motivada pela hiperconectividade das redes sociais, a desigualdade social, e a angústia”, diz Grostein, diretor de “Entrelaços”.
Ele cita, por exemplo, a falta de perspectiva das novas gerações em relação a uma morada própria. “Isso mina a perspectiva de horizonte das pessoas”. Ainda assim, os filmes alimentam, em generalidade, uma esperança no horizonte de seus protagonistas.