A passagem de Orson Welles (1915-1985) pelo Brasil representa um dos capítulos mais lendários da biografia do cineasta americano.
Em 1942, um ano depois o lançamento de “Cidadão Kane” –considerado por alguns o melhor filme da história–, Welles tomou a vanguarda de um pretensioso projeto com ares documentais, chamado “It’s All True” (“É Tudo Verdade”).
Depois de filmagens nos Estados Unidos e no México, o artista e sua equipe aportaram na cidade do Rio de Janeiro.
O objetivo era registrar o Carnaval carioca e reencenar a trajetória de jangadeiros que saíram de Fortaleza e foram encontrar o presidente Getúlio Vargas na logo capital do país.
O trajecto brasílio de Orson Welles, no entanto, teve outra paragem, sobre a qual quase zero veio a público: era Minas Gerais, mais precisamente na cidade histórica de Ouro Preto, onde ele seguira as tradicionais procissões da Semana Santa.
No filme, estas seriam um contraponto religioso às festividades carnavalescas.
O projeto “It’s All True” foi financiado por uma parceria entre o estúdio com o qual Welles trabalhava, a RKO, e os governos do Brasil e do Estados Unidos.
Fazia secção da política de boa vizinhança americana durante a Segunda Guerra Mundial, sob a batuta do presidente Franklin Roosevelt.
Um dos objetivos era atrair Vargas, que flertava com os países do Eixo, para o lado dos Aliados.
No entanto, a insatisfação dos contratantes com os rumos realistas tomados por Welles em terras brasileiras fizeram com que a empreitada fosse abortada e nunca tenha sido finalizada.
Em 1993, partes das imagens filmadas no Rio e em Fortaleza foram remontadas para um documentário de mesmo nome, dirigido por Richard Wilson, Bill Krohn e Myron Meisel. O filme, porém, não trouxe nenhuma cena de Ouro Preto.
As andanças de Orson Welles pela cidade mineira já tinham praticamente virado uma mito: com o passar do tempo, o esquecimento e o sumiço das filmagens, havia grande incerteza se o americano realmente tinha pretérito por lá.
Até que, em 2011, a pesquisadora e cineasta Laura Godoy, de 45 anos, resolveu iniciar uma investigação sobre a passagem por Ouro Preto.
O resgate da história: ‘Virou uma preocupação’
Godoy é ouro-pretana e havia ouvido da boca do pai, o farmacêutico e memorialista Victor Godoy, que o diretor americano havia pretérito pelas ladeiras da cidade histórica.
Sabia-se, por meio de relatos e fotografias da estação, que Orson Welles estivera em Belo Horizonte. Na passagem pela capital mineira, o diretor, em entrevista a um jornal sítio, elogiou a luz que incidia sobre a cidade.
Também sabia-se que ele tinha feito uma paragem em Itabirito, no meio do caminho entre a capital mineira e Ouro Preto.
Lá, fora flagrado fazendo xixi no rio e, instantes depois, fotografado, ainda fechando a braguilha, por um jovem cinéfilo que o havia reconhecido.
Hoje, Itabirito exibe uma estátua de Welles na margem do rio.
Godoy, com ajuda do pai, começou a juntar as peças do quebra-cabeça, pouco a pouco.
“Virou uma preocupação mesmo. Eu e ele, uma dupla de detetives com esse tema”, conta ela à BBC News Brasil.
Com a ajuda da pesquisadora americana Catherine Benamou, que virou consultora do projeto, Godoy partiu em procura dos rastros de Orson Welles em Minas.
Foram anos de procura, em uma romagem que foi desde as hemerotecas brasileiras até arquivos em diversas cidades nos Estados Unidos.
Até que a cineasta finalmente encontrou imagens inéditas e muito preservadas, filmadas pela equipe do diretor de “Cidadão Kane”, da procissão da Semana Santa de 1942 em Ouro Preto.
A invenção aconteceu na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) –mas ela não dá muitos detalhes do descoberta, que serão contados em um documentário que ela está produzindo.
“Fiquei anos sonhando com essas imagens. Porque era uma coisa incerta –o que foi filmado, se o material tinha resistido”, lembra Laura Godoy.
“Quando vi, fiquei muito emocionada. É um tesouro. São imagens que remontam a esse tempo, e de uma qualidade tão boa, que me comove muito enquanto ouro-pretana, pesquisadora e alguém que entende a memória porquê precípuo para compreender o mundo que vivemos hoje.”
Agora, ela está montando, junto do diretor e também ouro-pretano João Dumans, um documentário sobre a passagem de Orson Welles em Ouro Preto e sobre a procura por essa história.
O título provisório do documentário é “Welles na Terreno do Silêncio”, com previsão de lançamento em 2026.
As partes estão negociando a liberação das imagens da dezena de 1940 junto à Paramount, o estúdio americano que detém os direitos sobre elas.
A BBC News Brasil procurou a assessoria de prensa da Paramount para confirmar a negociação e saber mais detalhes, mas não recebeu resposta.
Patrimônio revelado
As cenas mostram a cidade mineira em uma estação em que o chegada a equipamentos cinematográficos e até mesmo de retrato eram coisa rara.
A lente do diretor americano descortina uma Ouro Preto dissemelhante da atual.
Em 1942, a cidade ainda sofria com o baque econômico decorrente da perda do status de capital de Minas Gerais.
A sede do governo estadual havia sido transferida havia menos de meio século para Belo Horizonte, fundada em 1897.
“É um registro, a princípio, muito etnográfico, desse interesse [do Welles] pelas pessoas, de mostrá-las, além dos lugares”, complementa Laura Godoy.
Documentos, reportagens de estação e trechos do quotidiano de Richard Wilson, assistente de direção de Welles no Brasil, juntam-se no documentário às imagens descobertas por Godoy.
O “silêncio” do título do documentário, diz ela, refere-se à sintoma religiosa da Sexta-Feira da Paixão, quando a cidade entra em um momento de reflexão –mas não só a isso.
“É também o silêncio da memória, do apagamento dessas imagens nesses anos todos”, resume a cineasta, apontando também para as pessoas que aparecem nas filmagens.
“Porquê era uma população muito pobre, muita gente não teve requisito de ter fotos dos seus avós, de fabricar essa memória fotográfica.”
Para ela, as imagens antigas mostram que, apesar de Ouro Preto ter se tornado uma atração turística, conseguiu manter tradições, porquê a procissão da Semana Santa.
Horas de arquivos ainda não exibidos
O ano de 2025 marca 110 anos do promanação de Orson Welles, em 6 de maio; e 40 anos de sua morte, em 10 de outubro.
Décadas depois de sua produção, o legado daquele que é considerado um dos inventores do cinema contemporâneo continua vivo e ainda repleto de tesouros a serem descobertos ou revelados ao público –secção disso guardado na própria UCLA.
O historiador Josafá Veloso se ocupou da façanha brasileira de Orson Welles em sua tese de doutorado na Escola de Informação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
No trabalho, o historiador juntou reportagens e documentos históricos para reconstruir o roteiro do filme planejado na dezena de 1940 e que acabou não indo primeiro.
Segundo Veloso, esse filme de Welles misturaria documentário, chanchada e ficção, porquê o cineasta fez “muitas vezes depois na sua curso”.
Telegramas enviados por Welles registrando o transcurso da produção dão pistas sobre o que foi filmado na estação.
Veloso estima que haja pelo menos 6h de material inédito filmado pelo americano no Brasil –incluindo não só Ouro Preto, mas também Rio, Niterói, Salvador, Recife e Fortaleza.
As películas estão tanto em preto e branco quanto em technicolor (técnica para tingir filmes que usava três rolos de filme em três cores cada um: verdejante, vermelho e azul).
O pesquisador estima ainda que possam subsistir por aí até 7 horas de gravações de música brasileira –inclusive sons da nata do samba e da rádio registradas durante o Carnaval no Rio.
Essa seria a “cereja do bolo” a ser encontrada e eventualmente mostrada ao público.
Sabe-se que Grande Otelo protagonizou a secção sobre o Carnaval; que Herivelto Martins ajudou Welles a escolher músicas e invocar artistas brasileiros; e que foram filmados Pixinguinha, Benedito Lacerda, Dorival Caymmi e Emilinha Borba.
“São mestres do samba que tiveram registrada sua música e que também foi rearranjada pela orquestra do Cassino da Urca. O Welles pegou os sambas brasileiros que fizeram sucesso no Carnaval anterior e criou uma espécie de suíte, um pot-pourri”, explica Veloso, diretor do documentário “Festim Coutinho”, sobre o cineasta brasílio Eduardo Coutinho (1933-2014).
Segundo Catherine Benamou, consultora no documentário de Godoy, o material inédito é de valor “incalculável”.
Na UCLA, foi encontrada por exemplo a reencenação da travessia de mais de 2 milénio quilômetros feita pelos jangadeiros cearenses, que em 1941 partiram pelo mar para reivindicar direitos trabalhistas dos pescadores junto a Getúlio Vargas, existem ainda cenas da ingressão da jangada São Pedro na Baía de Guanabara.
Há também imagens dos próprios jangadeiros, porquê Manoel Olímpio Meira, o Jacaré –um dos líderes do movimento e que morreu afogado durante as filmagens.
Por motivo dos imbróglios envolvendo direitos de divulgação das imagens, ainda não há previsão de que material seja integralmente disponibilizado ao público universal.
Esses imbróglios têm a ver, em secção, com o indumento de a RKO ter sido desmembrada ao longo dos anos até falir, em 1957. Ela foi logo comprada pela General Tire and Rubber Company, uma empresa de pneus, que a vendeu para a produtora Desilu Productions.
Em 1967, a Desilu foi comprada pela Paramount. No ano pretérito, a Paramount foi vendida para a Skydance Media.
Catherine Benamou diz que o registo da UCLA Film and Television Archive está ajudando a Paramount a planejar a preservação do material.
Ela calcula que os arquivos da UCLA têm 23 horas de imagens inéditas no Brasil, incluindo cenas dos jangadeiros, do Carnaval e de Ouro Preto.
“Outros usos vão depender de negociações individuais com a Paramount sobre os direitos de usar o material para projetos específicos”, diz ela, professora titular do Departamento de Cinema e Estudos de Mídia da Universidade da Califórnia em Irvine e autora do livro “It’s All True – A Odisseia Pan-Americana de Orson Welles”, lançado ano pretérito pela Editora Unesp no Brasil.
O término da ‘maldição’?
Durante o projeto, o estúdio RKO e o Escritório do Coordenador dos Assuntos Interamericanos (OCIAA) do governo dos EUA, encabeçado pelo vice-presidente Nelson Rockefeller, já se manifestavam francamente contra a liberdade artística assumida pelo diretor.
Leste não se furtava em registrar a população negra, as manifestações afro-brasileiras e a veras das favelas.
Os contratantes americanos eram avisados pelo gerente de produção de Welles no Brasil, Lynn Shores, por meio de telegramas –que, segundo escreve Josafá Veloso em sua tese, eram “próximos da descarada espionagem”.
Segundo o pesquisador da USP, Welles travou contato também com as produções da Cinédia, estúdio pioneiro no cinema brasílio, e buscou fazer um filme que agradaria aos brasileiros.
“Ele era muito consciente de que não podia fazer um filme de cima para inferior cá”, diz Veloso.
“Ele não quis fazer um tanto estereotipado, um tanto embranquecido. Tem corpos de negros suando, dançando trancados lá na UCLA [refere-se às imagens de arquivo que ainda não vieram a público], tem carnaval e macumba. O racismo foi um dos motivos pelo qual o filme foi embargado.”
“Ele queria fazer dos negros brasileiros protagonistas desse incidente. Quando ele chega no Brasil, ele não sabe que filme fazer. E, logo, ele vai detrás das religiões afro-brasileiras.”
Mesmo que Orson Welles tenha dirigido, depois da RKO, mais de dez filmes até sua morte, alguns analistas chegaram a atrelar o fracasso de “It’s All True” a uma espécie de “maldição” na biografia do cineasta.
A história era alimentada pelo próprio Welles, que contava que um pai de santo, que teria ido ao escritório dele no Rio para conversar sobre as filmagens no Brasil, de repente mostrou insatisfação e furou o roteiro com uma caneta– era uma anedota para falar do que ele mesmo chamou de maldição.
Uma maldição que faria com que, depois a passagem pelo Brasil, vários filmes feitos por Welles acabassem incompletos.
No entanto, pesquisadores e cineastas porquê Catherine Benamou, Josafá Veloso e Laura Godoy têm tentado mudar essa perspectiva e mostrar a passagem do cineasta americano pelo Brasil porquê uma reinvenção.
Para Catherine Benamou, o documentário não finalizado na América Latina marcou uma viradela na curso de Welles. Ela aponta que os métodos de filmagem empregados em “It’s All True”, porquê a Cameflex e o 16 mm, tiveram influência imediata nas produções posteriores.
“O retrato realista de exteriores em ‘Otelo’, ‘Mr. Arkadin’, ‘Touch of Evil’ e ‘Chimes at Midnight’ se deve muito ao estilo neorrealista empregado em ‘It’s All True’. A trilha sonora gravada abriu a possibilidade do uso criativo da música latina nos filmes de Welles”, afirma a pesquisadora.
Laura Godoy acrescenta que a vinda ao Brasil foi a primeira vez que Welles saiu de um estúdio. Depois, teve uma curso “praticamente independente”, fora de Hollywood.
Para Josafá Veloso, as alegações de que Welles teria sido “precito” no Brasil carregam preconceitos.
“De indumento, aquilo mudou a curso dele para sempre. Mas mudou porque ele era um artista em conflito com a indústria. Tão autônomo e autoral porquê ele era, não ia dar evidente essa história”, argumenta o historiador da USP.
“Cá nasceu o Welles independente. O batismo dele porquê cineasta independente aconteceu no nosso Carnaval de 1942.”
Veloso acrescenta que o diretor americano também aprendeu, no Brasil, a mourejar com os imprevistos que mudam o cerne de uma obra artística no transcurso da sua produção.
Por cá, o projeto de Welles no Brasil ganhou homenagem no batismo de um dos festivais de cinema mais importantes do país, o É Tudo Verdade –focado em documentários e criado em 1996 pelo crítico e jornalista Amir Labaki.
“O Brasil não foi uma maldição para Orson Welles. Foi uma bênção. Ele virou brasílio, caiu no samba. Foi uma sabedoria que ele levou para a vida inteira”, acrescenta o historiador, que lembra uma história contada numa entrevista recente de Oja Kodar, viúva de Welles, à prensa brasileira.
“Ele nunca esqueceu de sambar. Pela viúva dele, sabemos que, mesmo triste, sem conseguir financiamento, com todas as dificuldades, ele se lembrava do Brasil e sambava quando as coisas estavam aborrecidas. O samba nunca saiu do pé do Welles.”