Esta semana celebraram-se os 50 anos da construção da ponte Presidente Costa e Silva, mais conhecida uma vez que ponte Rio-Niterói. Tendo vivido boa segmento da vida na cidade-sorriso, um dos apelidos de Niterói, espanto-me com a negligência com que a memória da ponte vem sendo tratada pelos intelectuais brasileiros e, mormente, os cariocas e fluminenses.
A construção da ponte Rio-Niterói começou em 1969 e durou até 1974. Foi inaugurada ainda no procuração do presidente Médici, o mais truculento governante da ditadura. Com dois anos de demora e muita maracutaia debaixo dos panos, a ponte era uma das obras faraônicas do regime. Mas, diferentemente da Transamazônica, da hidrelétrica de Itaipu ou das usinas nucleares, tratava-se de uma obra faraônica no meio econômico da região, no quintal da ex-capital do país.
Quando foi inaugurada, em 4 de março de 1974, houve cortejo de carros oficiais, com Médici abrindo a fileira em seu Rolls-Royce presidencial. A sarau reuniu oito ministros de Estado, quatro governadores, autoridades eclesiásticas, militares, vários deputados, prefeitos e vereadores fluminenses. O presidente descerrou a placa comemorativa que dizia: “Nesta passagem tão rica de venustidade e história, a Revolução de Março de 64, ao completar-se o seu primeiro decênio, escreve em concreto e aço um de seus compromissos com a Pátria”.
Houve duas inaugurações. A primeira no entrada carioca da ponte. A maior foi a segunda, na terreiro do pedágio em Niterói, onde o todo-poderoso Ministro dos Transportes, Mário Andreazza, discursou para a poviléu de 10 milénio pessoas. Em seguida houve uma missa em homenagem à memória dos operários mortos na construção. Posteriormente a solenidade a poviléu invadiu a pista e percorreu a pé a ponte para chegar ao vão mediano, a uma intervalo de 5 quilômetros.
Não me recordo de nenhum outro momento em que o povo tenha marchado sobre a ponte, de onde se tem uma das melhores vistas da baía de Guanabara. Nunca sequer foi cogitado que a ponte servisse turisticamente aos cariocas e fluminenses aos domingos, por exemplo. Sua função era transportar carros, ônibus e caminhões, e servir de utopia asfaltada das mentes.
Até hoje inexiste relação ferroviária entre as cidades. O metrô, eternamente prometido, nunca saiu do papel. Poderia se usar uma das pistas da ponte para colocar modernas linhas de VLT, mas isso sequer é cogitado à sério. Os ônibus padecem da concorrência com os carros, e não dirigem em filete exclusiva. As barcas ligam o Rio a Niterói, mas excluem outras grandes cidades do outro lado da baía, uma vez que São Gonçalo, com mais de 1 milhão de habitantes, Magé e Guapimirim.
Inaugurada com três faixas para cada sentido, a ponte foi ampliada em 2009 para quatro faixas. Porquê se a brecha de faixas à fórceps melhorasse o trânsito. Estamos carecas de saber que toda vez que mais estradas ou faixas são abertas, o que há é o maior incitamento aos indivíduos privados colocarem seus carros nas ruas. A obra da ditadura era uma ode à carrocracia brasileira, estimulou nossa paixão cega pelos automóveis e desprezo pelo transporte público.
A ponte Rio-Niterói era desejada por nossos carrocratas há muito tempo. Sonhada desde o século XIX, não foi idealizada pela ditadura. Mas foi a ditadura que deu sua faceta carrocrata, em consonância com os desejos de subida individualistas da sociedade. Um deles era o cantor Marcus Pitter que gravou em 1970 uma cantiga chamada justamente de “A ponte Rio-Niterói” que dizia: “Quando a ponte terminar/ E a saudade restringir/ Em meu sege/ De hora em hora vou ver meu paixão/ Num minuto estarei lá/ É só o sege aligeirar”.
Quando todo mundo coloca seu sege na rua e projetamos nos automóveis as utopias de mobilidade urbana, surgem os engarrafamentos. O primeiro engarrafamento aconteceu no dia seguinte à inauguração, quando às 20h do dia 5 de março formou-se uma fileira de 1 quilômetro na terreiro do pedágio em Niterói. Idealizada para dar vazão a 50 milénio carros por dia, hoje comporta o triplo disso.
Em Niterói ela é simplesmente conhecida uma vez que “a ponte”. “Porquê era Niterói antes da ponte?” “Porquê está o trânsito na ponte?” “Você vai de barca ou pela ponte?”, perguntam os niteroienses com frequência uns para os outros.
Entre 1960 e 1975, o Rio de Janeiro foi cidade-estado, o estado da Guanabara. Assim, Niterói era a capital fluminense. No entanto, o imaginário que vigorava entre os moradores de Niterói não era o de uma capital, mas o da “cidade-dormitório”, espécie de periferia um pouco mais arrumada do Rio de Janeiro. Nascido em 1980, não conheci a cidade pré-ponte. Mas a mentalidade da cidade isolada e de orgulho recalcado ainda estava presente na minha puerícia e puberdade.
A partir dos anos 1990 essa mentalidade mudou e os niteroienses aceitaram o lugar mediano que a ponte lhe impôs. A ponte incorporou a cidade à BR 101, que corta o país de setentrião a sul. A cidade inchou e hoje tem muita dificuldade de mourejar com os intensos engarrafamentos.
Curiosamente, a ponte mudou mais a vida dos niteroienses que cariocas. Para muitos moradores do Rio, a ponte exclusivamente agilizou o caminho para a Região dos Lagos, pólo turístico do Estado. Muitos cariocas passam por Niterói, mas poucos param na cidade-sorriso. Não é vasqueiro encontrar um carioca que nunca visitou as praias de Niterói que, ouso manifestar sem me desculpar pelo bairrismo, são tão bonitas quanto às mais belas do Rio de Janeiro.
Mais angustiante é o trajo de que, apesar de ter me formado historiador pela Universidade Federalista Fluminense, sediada em Niterói, não conheço nenhum trabalho acadêmico ou jornalístico de peso sobre a ponte. Há o maravilhoso livro do historiador Pedro Campos chamado “Estranhas catedrais”, que trata do intenso prolongamento das empreiteiras sob a ditadura através da construção das obras faraônicas, entre elas a Ponte Rio-Niterói. É pouco diante de tudo que a ponte nos transformou.
Diante da ignorância acadêmica, permanecem vários mitos sobre a obra. Quanto custou a obra de trajo? Quantos morreram exatamente na construção? Boatos dizem que alguns operários teriam sido “enterrados” sob os pilares, tamanha a pressa em concluir a obra. Qual o impacto na vida dos fluminenses? Porquê ir além das memórias sem precisão objetiva uma vez que as que descrevi cá? Há tratados sobre a ponte na espaço da Engenharia. Mas falta pesquisa na espaço de Humanas.
Espanta que um pouco tão cotidiano e presente na vida dos niteroienses ainda seja um ponto cego da pesquisa acadêmica ou mesmo jornalística séria. Muitos de nós reduziram-na a uma obra faraônica da ditadura, sem compreender suas implicações sociológicas, antropológicas, históricas e políticas. O que é mais íntimo com frequência torna-se o mais incógnito para nós mesmos.