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Os Satyros apostam na IA em peça sem atores no palco – 20/04/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Em 1928, o modernista Oswald de Andrade propôs, com o “Manifesto Canibal”, tragar as influências das vanguardas europeias e as transformar em um tanto brasiliano, dando origem a uma insurreição contra a colonização da cultura pátrio.

Quase centena anos depois, a companhia Os Satyros assume a inspiração oswaldiana e, diante do que labareda de expansão vertiginosa das novas tecnologias, propõe o “Manifesto Tecnofágico” —um olhar crítico e de asserção da potência humana, e brasileira— sobre as máquinas.

“Cá, nesse soalho híbrido tropical, emergem contrafeitiços, gambiarras, melodias, formas de resistência que nos fazem dançar com as máquinas”, diz o primeiro dos dez princípios do manifesto.

No palco, a iniciativa ganha tradução mais radical por meio da “Peça para Salvar o Mundo”, idealizada e escrita por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, fundadores do grupo, e encenada com um avatar no lugar dos atores. O espetáculo estreia nesta quarta-feira (23).

“Se a gente não tiver uma relação com a tecnologia, ela vai nos engolir. Logo, temos que engolir ela antes”, diz Vázquez. “Temos que engolir a tecnologia e não a negar, porque ela a cada dia invade mais a nossa vida. E, se a gente não se relacionar com ela, vamos nos tornar obsoletos”.

Engolir e transformar, no caso deste espetáculo, significa usar a lucidez sintético para um diálogo em que a máquina colhe ideias, informações e estratégias junto ao público para salvar a humanidade de epidemias, crise climática, guerras e intolerâncias.

A interação ocorre em tempo real, por meio do avatar manipulado pela atriz Mariana Leme, fora de cena o tempo todo, e pelo designer Thiago Capella, da Circulus Ópera, produtora dedicada à arte com lucidez sintético. Ao longo da encenação, o avatar assume formatos de robô, mulher, varão, moço, velho e conversa com voluntários da plateia sobre questões relacionadas ao horizonte.

O mote é a capacidade humana de promover o próprio extermínio, o que é ressaltado em imagens de guerra, rafa e devastações projetadas num telão que ocupa o palco inteiro na sede dos Satyros, na rossio Roosevelt, região meão de São Paulo.

“Estamos aprendendo a fazer esse teatro novo e uma das questões é que preciso estar atenta a tudo. Por exemplo, preciso gerar desenhos físicos do meu corpo uma vez que se fosse um robô”, explica a atriz.

As movimentações e as falas de Mariana são captadas por equipamentos, em uma sala distante do palco, e transformadas pela lucidez sintético no avatar que dialoga com o público.

Vázquez, um pesquisador do uso da tecnologia no teatro, ouve questionamentos da classe artística, que ficaram mais intensos a partir da decisão de estrear um espetáculo sem nenhum ator em cena. Mas reivindica o recta de testar e lembra o histórico de inovações nas artes cênicas.

“Desde as civilizações egípcias, grega e indiana, todas as tradições teatrais usaram tecnologias”, afirma, citando técnicas de som e iluminação uma vez que exemplos.

O dramaturgo e diretor da peça, no entanto, admite que hoje em dia as transformações são mais profundas e mexem com corpos e mentes. Ele destaca o concepção de ciborgue —um ser humano que não vive mais socialmente sem extensões tecnológicas, uma vez que os celulares.

“Não é mais um objeto extrínseco. Somos nós fazendo segmento da tecnologia. É um susto, mas não é um susto só do teatro, é um susto da sociedade que, ao mesmo tempo, tem um fascínio e um susto do que isso vai fazer conosco.”

O designer de lucidez sintético usa a combinação de dez softwares para captar os movimentos e os sons e os transformar nos diversos formatos do avatar que conduz o espetáculo. A pesquisa envolveu uma espécie de quebra-cabeças do dedo, com testes para entender o que funcionava melhor cenicamente e quais programas seriam cruzados para chegar ao resultado final.

“É importante expor que tudo o que acontece é gerado pela atriz. Desde os movimentos, as intenções vocais, as expressões corporais e faciais”, diz Capella. “O que a lucidez sintético trabalha é a transcodificação desse teor para a tela, para a projeção que o público vê”.

Os Satyros apostam na parceria com o mundo do dedo desde 2009, por meio de pesquisas sobre o potencial das tecnologias para a estética do teatro.

“Quando iniciamos nossa pesquisa sobre teatro ciborgue, há 16 anos, só tínhamos uma certeza: o teatro não poderia seguir alheio à revolução tecnológica que já estava em curso”, diz Ivam Cabral.

O grupo começou explorando o uso de celulares, internet e salas de bate-papo na peça “Hipóteses para o Paixão e a Verdade”, sobre pessoas que vivem solitárias no núcleo de São Paulo. A pesquisa continuou nos espetáculos “Cabaret Stravaganza”, de 2010, e “E Se fez a Humanidade Ciborgue em Sete Dias”, em 2014, em que foram usados aplicativos de celular e a “tecnopresença” —a presença em qualquer espaço-tempo por meio do uso da tecnologia.

Na era da pandemia, a companhia mergulhou no teatro do dedo e apresentou 17 peças nesse formato entre 2020 e 2022 e, agora, avança para a encenação sem a presença de atores no palco.

“Fomos muito atacados quando fizemos o teatro do dedo no Zoom. Muita gente falou que não é teatro. Brigaram comigo. Eu falei ‘deixa eu fazer isso? Posso fazer?'”, recorda Vasquez.

Não que seja novidade quebrar barreiras. A ousadia faz segmento do repertório do grupo desde a instalação, em 1989. A companhia tem em seu histórico, por exemplo, a integração da comunidade trans aos espaços da Roosevelt —além do teatro, Os Satyros são fundadores da SP Escola de Teatro, produzem o Festival Satyrianas e administram o Cine Bijou.

E robotizar o palco não significa que vão desistir as artes cênicas tradicionais, com personagens de mesocarpo e osso. Prova disso, diz Vázquez, é que o grupo continua em papeleta com “A Mansão de Bernarda Alba”, um clássico de Federico García Lorca com elenco formado por 25 atores.

A pesquisa com avatares em cena é segmento de um curso que Vázquez ministra, no momento, na escola de teatro Ernst Busch, na Alemanha. “A gente não deve ter susto do horizonte”, defende o diretor.

CONHEÇA O MANIFESTO TECNOFÁGICO

1. Nosso ponto de partida é o Brasil —mas um Brasil em transe tecnológico.

Cá, nesse soalho híbrido tropical, emergem contrafeitiços, gambiarras, melodias, formas de resistência que nos fazem dançar com as máquinas.

2. Somos criadores da máquina, mas uma vez que artistas nunca seremos suas criaturas.

A técnica nasce de mãos humanas, de corpos sensíveis. Somos atravessados pelas máquinas, mas nunca vamos nos subordinar a elas.

3. Tragar não é plagiar: é transmutar.

Antropofágicos, sim —comemos as energias e pulsões de seres humanos e máquinas, dos seres da natureza e das programações computacionais, e seguimos além— em direção a uma terreno prometida e nunca alcançável.

4. Toda técnica é cosmológica.

Não existe tecnologia neutra, universal, fora das relações de poder. O algoritmo é uma forma de poder. A arte entra no combate contra os algoritmos.

5. Zero é mais humano do que um robô tupiniquim.

Toda lucidez sintético é fruto de um esforço coletivo da humanidade. Nossa tecnologia tupiniquim carrega o peso de toda a violência de nossa história. Reconhecer isso nos liberta para edificar uma tecnoarte viva.

6. A estética do pensar é nossa arma secreta.

Os artistas podem subverter a lógica dos algoritmos dominantes. Pensar uma vez que artista não é calcular: é gerar formas e transgressões que escapam ao tecnocapitalismo.

7. Recusar o fado não é recusar o horizonte.

Enfrentamos o poderio do algoritmo e das programações não com isolamento, mas com meandro, glitch, dança e contraprogramação.

Queremos futuros múltiplos, mestiços, indeterminados.

8. Somos tecnoxamãs, tecnopoetas, tecnodesviantes.

Comunicamos com o do dedo uma vez que quem canta para espíritos —não para dominá-los, mas para coexistir com suas forças.

9. A cosmotecnologia é segmento da cosmopolítica.

Somente através de uma arte cibernética podemos confrontar o tecnocapitalismo. Buscamos uma arte que pulsa com os circuitos, que tensiona o tempo, desprograma os protocolos, e inventa formas de subsistir em meio a tecnofeudalismo cada vez mais opressivo.

10. O teatro é nossa máquina de presença —e de desprogramação.

O teatro é laboratório de futuros: lugar onde a técnica encontra o corpo, e o corpo, em sua fragilidade, reencena o mundo.



Folha

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