Há 23 anos o Brasil não vibrava em uníssono uma vez que fez na noite deste domingo (2), quando Penélope Cruz anunciou que “Ainda Estou Cá” havia vencido o Oscar de melhor filme internacional, o primeiro do país. Lá detrás, era o futebol que trazia motivo de alegria. Agora, é o cinema, objectivo de ataques em anos recentes, mas capaz de reproduzir o clima de patriotismo de uma Despensa do Mundo.
O filme de Walter Salles já era oferecido uma vez que predilecto nas últimas semanas e desbancou o gálico “Emilia Pérez”, o dinamarquês “A Pequena da Agulha”, o teuto “A Semente do Fruto Sagrado” e o letão “Flow”.
É o primeiro Oscar do país, que foi indicado pela última vez na cerimônia de 1999, com “Medial do Brasil”, também de Salles e estrelado por Fernanda Montenegro. Antes disso, bateu na trave com “O Que É Isso, Companheiro?”, em 1998, “O Quatrilho”, em 1996, e “O Pagador de Promessas”, em 1963.
“Ainda Estou Cá” também estava indicado às estatuetas de melhor filme, que ficou com “Anora”, de Sean Baker, e melhor atriz, com Fernanda Torres, preterida por Mikey Madison, do mesmo concorrente. Com a tripla indicação e a vitória, os motivos de comemoração vão muito além das telas de cinema.
Com “Ainda Estou Cá”, veículos estrangeiros discutiram amplamente capítulos da história brasileira e os cenários político e cultural do país. Falou-se muito sobre os ataques e cortes de Jair Bolsonaro nas artes, o embate amornado entre esquerda e direita e questões mal resolvidas da ditadura militar.
Os porta-vozes, Salles e Torres, despersonalizaram a campanha pelo Oscar, levando o debate a encontros em cinemas, programas de televisão e entrevistas. Frisaram, com frequência, que o golpe de 1964 só foi provável graças à ajuda dos americanos, o que muitos pareciam não saber.
“Ainda Estou Cá”, mais do que uma obra pessoal —seja para seu realizador, seja para a família de Eunice Paiva—, foi capaz de levar todo o Brasil consigo na bagagem. Levou nossa música, história, traumas, verdade política, nosso comportamento, nossas paisagens e estrelas, nas figuras de Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro, principalmente.
Foram aos menos 762 salas de cinema nos Estados Unidos, acumulando US$ 5,2 milhões no país, tapume de R$ 30 milhões, e mais US$ 24,7 milhões, tapume de R$ 144 milhões, no resto do mundo, com temporadas notáveis e ainda em curso na França, em Portugal e no Reino Unificado.
São espectadores estrangeiros que acompanharam a harmoniosa vida da família Paiva na primeira segmento do filme, até o patriarca ser levado por agentes da ditadura militar. E que, a partir daí, foram tragados por uma delicada lição de história que ajuda a entender os arroubos autoritários da extrema direita e a sombra da violência que historicamente paira sobre o Brasil.
Não à toa, a revista The Hollywood Reporter, referência na cobertura de cinema nos Estados Unidos, cedeu às emoções causadas pelo filme e publicou, na última semana, que “Ainda Estou Cá” poderia “salvar vidas” e “suprimir o renascimento de um movimento de extrema direita”. Uma reflexão um tanto ingênua, mas ao menos interessada.
O prêmio também diadema duplamente a boa tempo do cinema vernáculo —porque o Urso de Prata para Gabriel Mascaro, no Festival de Berlim, na semana passada, já havia oferecido início às comemorações. Se em anos recentes os filmes brasileiros já vinham conquistando prestígio em festivais europeus, em peculiar em Cannes, agora a lado mais mercantil da indústria também encontra motivos para prestar atenção no que se produz no país.
A vitória deve alavancar não exclusivamente acordos de coprodução com outros países —a França já é praticamente sócia do cinema brasílio, com dezenas de participações em filmes todos os anos—, uma vez que também impulsionar as carreiras daqueles que tentam entrar no zeitgeist hollywoodiano, uma vez que Wagner Moura, Gabriel Leone, Alice Braga e Fernanda Torres, se lhe interessar.
Internamente, ajuda a justificar para os resistentes a leis de fomento uma vez que a Rouanet a valia de investir verba, público ou privado, no cinema e nas artes no universal —mesmo que “Ainda Estou Cá” não tenha usado verba público.
Os primeiros sintomas nem aguardaram a vitória para manar. No início da semana, o Festival de Cannes anunciou que o Brasil seria o país homenageado em seu Mercado do Filme, em maio, ampliando o alcance das iniciativas de órgãos públicos e empresas privadas que estarão no evento, vendendo de roteiros a filmes inteiramente prontos. Nas reportagens estrangeiras que noticiavam a decisão, lá estava “Ainda Estou Cá”, citado para exemplificar o bom momento do país no meio cinéfilo.
A verdade é que sempre estivemos cá, e também lá fora. O cinema brasílio merece ser mais visto, pelos próprios brasileiros e por estrangeiros, e o Oscar de agora é boa publicidade contra qualquer multíplice de vira-lata, diferença ideológica ou simples falta de hábito que se imponha no caminho entre o testemunha e o projetor.