Uma atriz que já teve popularidade arrebatadora envelhece, cai em desgraça e é preterida por uma muito mais novidade, com seu tino de novidade e ar misterioso. A vida imitou a arte na última noite de Oscar, que pareceu repetir a trama do filme “A Substância” ao premiar Mikey Madison, de “Anora”, em vez das favoritas Demi Moore ou Fernanda Torres.
Enfim, uma vez que uma desconhecida de 25 anos conseguiu desbancar as duas atrizes que vinham dominando a temporada, uma respeitadíssima e com um exposição de volta por cima irresistível e outra que arrebatou Hollywood com seu carisma, num papel que se encaixa nas preferências históricas da Ateneu de Artes e Ciências Cinematográficas?
Moore, aos 62 anos, vinha ganhando boa secção dos troféus que servem de termômetro para o Oscar com “A Substância”. Torres, aos 59, era a novidade invenção e preocupação da mídia na temporada de premiações com “Ainda Estou Cá”. Madison, por sua vez, nem garantida entre as indicadas era, há menos de dois meses.
Sua vitória, porém, diz mais sobre a Ateneu do que sobre sua performance —boa, mas longe de rememorável, ao contrário das outras duas. Madison tem currículo modesto, com menos de uma dezena de papéis, pouco expressivos, em longas-metragens.
Nascida em Los Angeles, Mikaela Madison Rosberg já quis seguir curso no hipismo, mas, criada na meca do cinema, mudou de teoria ao eclodir em curtas no início dos anos 2010. Não trabalhou com nenhum diretor de peso até ser escalada para viver uma integrante da família Manson em “Era Uma Vez em… Hollywood”, de Quentin Tarantino —e foi incinerada viva por Leonardo DiCaprio em seu final catártico.
Em “Pânico”, de três anos detrás, viveu outra psicopata, Amber Freeman, e depois integrou o elenco das séries “Better Things” e “A Informante”, ambas de alcance bastante restringido. Portanto veio “Anora”, e aí tudo mudou.
Neste domingo, o Oscar reforçou que ainda está recluso a preconceitos e preferências do pretérito, por mais que tente se renovar com políticas uma vez que a diversificação de seus membros. Mais importante, mostrou que não está imune ao etarismo que assola a indústria, retratado em “A Substância” e tão lembrado por atrizes de peso, uma vez que Nicole Kidman e Meryl Streep, que urgem o cinema e a televisão a gerar bons papéis para mulheres supra dos 40 anos de idade, as “lobas”.
Em quase um século de história, exclusivamente 30 mulheres com mais de 40 anos venceram o Oscar de melhor atriz, enquanto 63 atores na mesma filete etária o fizeram. Adrien Brody, que recebeu sua segunda estatueta neste ano, é o único varão aquém dos 30 anos a triunfar em melhor ator, enquanto 18 mulheres, contando agora com Madison, o fizeram. Os dados são de um levantamento da emissora Sky News.
Olhando para os números, parece delírio pensar que Moore tinha chances reais. Sua campanha perde força também ao lembrarmos a resistência da Ateneu em premiar filmes de gênero.
Não à toa, “A Substância”, um terror com o agravante de seguir a risca “body horror” —filmes que causam espanto a partir da violação gráfica do corpo humano— teve que se contentar com a estatueta de cabelo e maquiagem, apesar de competir, entre outras, nas prestigiosas filme, direção e roteiro original.
A mera indicação de Moore era um teste da flexibilidade das normas informais da Ateneu, já que são várias as atrizes elogiadas por trabalhos de terror que ficaram de fora do prêmio. Em anos recentes, são exemplos notáveis Lupita Nyong’o, por “Nós”, e Vera Farmiga, por “Invocação do Mal”.
Na categoria de melhor filme, “A Substância” engordou uma franzina lista de terrores indicados, composta por “Amargo Pesadelo”, “O Exorcista”, “Tubarão”, “O Silêncio dos Inocentes”, “O Sexto Sentido”, “Cisne Preto” e “Corra!”.
No caso de Fernanda Torres, o repto era maior. Um quarto de século depois de sua mãe, Fernanda Montenegro, perder para outra novinha da indústria, uma insossa Gwyneth Paltrow, logo com 27 anos, ela também viu sua poderosa campanha ruir diante do clubinho de homens brancos, mais velhos, heterossexuais e americanos que continua tendo peso enorme nos resultados dos Academy Awards.
Se nem americanas conseguem driblar os preconceitos enraizados no corpo de votantes, imagine uma forasteira. Emma Stone, hoje aos 36, acabou com a sarau de estrangeiras mais velhas em duas ocasiões. A primeira foi com “La La Land: Cantando Estações”, ao levar o prêmio em cima de Isabelle Huppert, diva do cinema gálico. A segunda, com o recente “Pobres Criaturas”, em cima da alemã Sandra Hüller.
Outras grandes damas francesas, Emmanuelle Riva, por “Paixão”, e Catherine Deneuve, por “Indochina”, são mais dois exemplos de peso entre as preteridas por atrizes americanas ou britânicas.
Torres parecia estar no caminho para quebrar o tabu e fazer justiça para a mãe e para o Brasil, que ainda sente o amargura da guião de “Medial do Brasil”, mas não conseguiu, mesmo num papel que historicamente agrada aos votantes do Oscar.
A atriz, enfim, interpretou uma personagem real, precisou passar por uma transformação física ao perder peso e entregou uma performance que, apesar de contida, lançava mão de sentimentalismo. Tudo secção de uma receita que a Ateneu tende a recompensar.
Com um vestido num tom de rosa ironicamente parecido com aquele usado por Paltrow para concordar seu Oscar na cerimônia de 1999, Madison frustrou os brasileiros, que pareciam estar mais empolgados em torcer por Torres em melhor atriz do que pelo próprio “Ainda Estou Cá” em melhor filme ou filme internacional.
A história se repete, apesar de a Ateneu de Artes e Ciências Cinematográficas dar sinais tímidos de que quer mudar. Eles só não valem tanto para mulheres, ao que parece.