Em um dos tantos belos momentos do espetáculo “Não me entrego, não!”, primeiro solilóquio do lendário Othon Bastos, o ator parafraseia outro gigante dos palcos, Denzel Washington: “o cinema é do diretor, a TV é do editor, mas o teatro é DO ATOR.” Essa frase, aparentemente simples, sintetiza não unicamente a experiência artística de ambos, mas também o coração do que torna o teatro uma arte única – e a performance de Bastos na peça é a prova viva dessa máxima.
A reparo revela uma verdade fundamental sobre cada linguagem. No cinema, o ator é um elemento crucial (mas não inteiro) de um todo controlado pela câmera e pela visão do diretor. A televisão redefine performances, corta cenas e até altera o tom da atuação. No teatro, porém, não há cortes, retakes ou close-ups. A relação é direta, orgânica e irrepetível: o ator, com seu corpo, voz e presença, é o soberano daquele momento.
E é justamente essa soberania que Othon Bastos exerce com vantagem nessa montagem. Sozinho no palco – unicamente com a ajuda da “memória” (a atriz Juliana Medella) – sem a mediação de câmeras ou edições, ele conduz o público por suas reminiscências com a liberdade e o risco que só o teatro permite. Cada pausa, cada olhar, cada variação de tom é uma escolha dele, vivida e entregue em tempo real.
A fala também ecoa o tema médio do espetáculo: a resistência – teoria que se reflete na própria curso de Othon, que, mesmo consagrado no audiovisual, sempre retornou aos palcos, onde sua voz e seus gestos não são recortados, mas sim amplificados na relação direta com a plateia.
A simplicidade da montagem – sem cenários complexos ou efeitos tecnológicos – reforça essa premissa. Da ironia ao pathos, tudo depende dele: das histórias sobre Glauber Rocha e o Cinema Novo às lembranças do Teatro Duse, de Paschoal Carlos Magno, da versão polêmica de “Otelo” no Escola Rio de Janeiro às grandes encenações no Teatro Oficina com Zé Celso. Histórias não faltam.
Ao escolher um solilóquio para festejar seus 91 anos, Othon Bastos não unicamente revisita sua história, mas também reivindica o teatro porquê território último da liberdade artística. Sua performance é a prova de que, enquanto houver atores com essa coragem e entrega, o palco seguirá sendo um espaço de magia e potência, pois “o teatro é DO ATOR”, em toda sua vulnerabilidade e força sem nunca se entregar.
Três perguntas para…
…Othon Bastos
Em um momento da peça o senhor diz que o teatro é “do ator”, dissemelhante do cinema e da TV que dependem mais de editores e diretores. Poderia aprofundar essa reflexão? Uma vez que essa autonomia do teatro se reflete no seu trabalho neste solilóquio?
Essa frase foi dita por Denzel Washington, em uma entrevista, um ator inesperado que faz Shakespeare, faz “Otelo” e “Ricardo 3º”, um varão devotado ao teatro. Ele diz ainda: “é por isso que eu digo aos jovens atores, que subam no palco, porque é no palco que você aprende a atuar”. O que ele fala é perfeito, porque realmente no teatro é que você aprende porquê vivenciar um personagem, porquê ser um personagem. Do teatro você faz televisão, faz cinema, faz boate, faz show, faz o que você quiser, mas o cerne mesmo, a semente, está no teatro. E eu confio que o teatro é do ator. Ele está solitário no palco, ele É ali no palco. O palco é onde ele aprende tudo e onde ele vive tudo.
O que mudou no teatro brasiliano ao longo da sua curso até hoje? Sente falta de alguma coisa e o que acha que evoluiu positivamente?
Você, no teatro, evolui na proporção em que você trabalha, que você faz. Cada peça é um mundo. Tem uma frase extraordinária de um ator que diz “eu vejo o mundo através dos olhos do personagem”. Portanto, muda tudo a cada era. Qual é a peça que você acha que nós poderíamos fazer na era da ditadura militar, onde passamos 10, 20 anos de repressão violenta? O que você quisesse montar, você não conseguia. O teatro foi definhando nesse período. Agora o teatro está voltando com força totalidade, porquê o cinema, graças à Fernandinha, no exterior, está voltando com força totalidade e voltará com força totalidade. O Brasil está se reabilitando, quer expressar, tudo está recomeçando. O mal é que nós estamos sempre recomeçando e nunca confirmando.
O senhor deixou simples com esse espetáculo que não vai se entregar e seguirá trabalhando. O que ainda sonha em fazer no palco, no cinema ou na vida?
Quando eu disse que não me entrego, não, é porque eu não me entregarei, mesmo. Agora, o que eu vou fazer no horizonte, só o horizonte saberá. O que eu tenho, por enquanto, porquê objetivo, é levar essa peça aonde ela possa ser levada. Eu quero dar esse recado para todo mundo. Não se entregue, seja quem for, qualquer um. Porquê se você se entregar acabou. Só envelhece aquele que já desistiu de viver.
Sesc 14 Bis – r. Dr. Plínio Barreto, 285, Bela Vista, região médio. Sex. e sáb., 20h. Dom., 18h. Dia 21 (feriado), 15h Até 21/4. Duração: 100 minutos. A partir de R$ 21, em sescsp.org.br e nas bilheterias das unidades.
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