As vegetação aquáticas de tom avermelhado na vazante do Mangabal, em Corumbá (MS), dominam a metade subalterno da retrato de Luciano Candisani, exposta em um quadro de 2,25 m por 1,5 m. Na secção superior, há uma imensidão de águas pantaneiras e o firmamento enroupado de nuvens, alternando tonalidades de azul e branco.
Dois passos adiante, vemos uma outra imagem do mesmo tamanho, mas em tudo mais soturna. Na foto de Lalo de Almeida, o preto e o cinza dominam o terreno calcinado em Barão de Melgaço (MT), também no pantanal. Muito ao núcleo, um veado morto, um dos milhões de animais atingidos pelos incêndios que devastaram a região em 2020.
As 2 fotos estão entre as 80 que compõem a exposição “Chuva Pantanal Incêndio”, cuja introdução para o público acontece nesta quinta (7), às 19h, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.
São 40 imagens de Candisani, colaborador da revista National Geographic, que documentou a vida superabundante presente nos rios, lagoas e vazantes da região de 2012 a 2021. E outras 40 de Almeida, fotojornalista da Folha, que registrou a matança da vegetação e dos bichos pelo incêndio no segundo semestre de 2020.
“Há o horror e o maravilhamento, e eu sabia que não poderia tarar nem para um lado nem para o outro”, diz Eder Chiodetto, curador da exposição que ressalta o trabalho de dois nomes voltados a projetos de retrato documental de longa duração.
“A seguir na toada em que estamos, dizem os cientistas, o caminho é a desertificação do pantanal. Mas se me concentrasse nesse tom fatalista, poderia tanger uma vez que ‘morreu, que pena’. Por outro lado, o caminho inverso talvez parecesse ufanista. A questão era lastrar os dois discursos, a pulsão de morte e a pulsão de vida.”
Assim, as imagens trágicas se alternam ao longo da mostra com as visões sublimes, gerando diálogos improváveis na primeira sala do mezanino do Tomie Ohtake.
Almeida lembra dois momentos em que sentiu principalmente impactado ao longo das quatro viagens que fez ao pantanal naquele período, ambos apresentados na exposição.
O primeiro aconteceu na ida inicial, em agosto de 2020, quando ele e Fabiano Maisonnave, logo repórter da Folha, decidiram pegar a estrada a partir de Cuiabá rumo à herdade São Francisco de Perigara, em Barão de Melgaço.
“Começamos a ver bichos mortos e alguns machucados, que pareciam zumbis. Já não tinha mais incêndio, estava tudo devastado. Mais adiante, chegamos a uma estradinha, que dava chegada à herdade, e, de repente, vimos o veado morto. Perto dele, estava o filhote, aturdido. E, a poucos metros dali, uns 20 macacos-prego, todos carbonizados.”
Há mais de três décadas na Folha e viciado a fazer reportagens na amazônia, Almeida labareda a atenção para as diferenças entre as queimadas nos dois biomas.
“Na amazônia, normalmente, a floresta é desmatada, depois há uma espera para que a espaço fique mais seca e só em seguida botam incêndio. Quando acontece o desmatamento, a maior secção dos bichos vai embora, são poucos os que morrem em meio às queimadas. No pantanal, não, a quantidade de bichos mortos era assustadora.”
De concórdia com estudo transportado por cientistas do Inpe (Instituto Pátrio de Pesquisas Espaciais), os incêndios de subida intensidade que atingiram a região em 2020 queimaram uma espaço de 44.998 quilômetros quadrados, o que representa pouco mais de 30% do território do bioma na porção brasileira.
O segundo incidente que causou potente sensação em Almeida se deu na última viagem, em outubro de 2020, quando ele e Maisonnave estavam na herdade Santa Tereza, na região da serra do Resmonear, em Corumbá.
“O gerente da herdade disse que me levaria a um ponto onde o incêndio tinha pretérito com mais intensidade. No lugar, o soalho estava enroupado de cinzas muito claras, uma vez que se tivesse nevado. Foi aí que vimos o símio carbonizado, que parecia uma figura humana se arrastando para fugir das chamas.”
A foto do macaco calcinado se tornou o principal símbolo da tragédia, e a série sobre o pantanal em cinzas rendeu a Almeida a conquista na categoria Meio Envolvente do World Press Photo, a mais prestigiosa premiação de fotojornalismo do mundo, em 2021.
Formado em oceanografia e devotado a registrar diferentes formas de vida em águas doces e salgadas há mais de 30 anos, Candisani enfrentou desafios de outra ordem em suas incursões pela região. “Embora seja uma das maiores planícies inundáveis do mundo, a chuva tem sido um elemento secundário nas fotos do pantanal. Vemos mais imagens de boiadeiros, araras, onças… As águas turvas são a grande dificuldade para fotos subaquáticas”, diz.
Por isso, ele realiza expedições a pontos específicos, uma vez que nascentes, onde as águas são mais cristalinas. Aliás, prioriza o período de abril e junho, quando as chuvas são menos frequentes e as águas começam a passar de volta para os rios –é a idade da vazante.
Candisani enumera exemplos de locais fotografados por ele que têm pretérito por transformações preocupantes. “Na Vazante do Fortaleza [em Corumbá], onde fiz a maior secção das fotos subaquáticas dos jacarés, hoje não tem chuva. Neste mesmo momento do ano, em 2011, tinha murado de 3 m de profundidade.”
Por meio das fotos em tom de denúncia de Almeida e das imagens da natureza vibrante de Candisani, “Chuva Pantanal Incêndio” ganha, nas palavras do curador, a quesito de “exposição-manifesto”.