[RESUMO] Repórter da Folha que acompanhou a Alemanha na Despensa de 2014 relembra a temporada do time no litoral baiano, bastante atípica para os padrões da competição, a euforia dos jogadores com a experiência e as boas relações que mantiveram com a população lugar, uma vez que comprovam vídeos que viralizaram na idade e ainda hoje despertam simpatia, a despeito da goleada de 7 a 1 sobre o Brasil. Isolada e com entrada difícil, só por jangada, concentração praiana costuma ser apontada uma vez que fator mediano do triunfo do país no torneio.
Numa idade em que ainda se usava pouco o neologismo viralizar, a cena viralizou: o goleiro Neuer e o meio-campista Schweinsteiger, ambos vestidos com camisas do Bahia e abraçados a desconhecidos, pulavam e cantavam o hino do clube soteropolitano.
Duas das maiores estrelas da seleção de futebol da Alemanha, eles haviam chegado ao Brasil na véspera. Estavam num resort à litoral na vila de Santo André, município de Santa Cruz Cabrália, na chamada Costa do Descobrimento, litoral sul baiano onde desembarcou a armada de Pedro Álvares Cabral em 1500, escolhido para ser a base dos alemães durante a Despensa do Mundo de 2014.
Naquela mesma tarde, a equipe recebeu no gramado do seu campo de treino um grupo de pataxós que vivem na região, na Terreno Indígena Grinalda Vermelha. O atacante Klose, que completava 36 anos, foi festejado no meio de uma roda de dança e recebeu de presente um chocalho e um roda e flecha. Neuer ganhou um cocar.
Auxiliados por um brasílico professor de dança de quem eram placa, Schweinsteiger e Neuer surgiram dias adiante noutro vídeo, agora na praia, ensaiando desajeitadamente passos de samba e uma coreografia do hit “Lepo Lepo”, do grupo Psirico.
“Se concentração ganhasse jogo, o time do presídio não perdia uma.” De tão boa, a máxima desmerecendo a velha prática de confinar boleiros às vésperas de jogos e durante competições tem dois pais, o técnico João Saldanha (1917-1990) e Neném Prancha (1906-1976), roupeiro, jogador e mito do futebol carioca.
Mas a concentração baiana dos alemães na Despensa-2014 era fora da curva, um caso à secção. Acabou sendo, uma vez que reconheceram jogadores e percentagem técnica e restou evidente aos olhos do mundo, um dos trunfos da seleção europeia para invadir o tetracampeonato mundial, atropelando o Brasil por 7 a 1 na semifinal e batendo a Argentina por 1 a 0 na final.
Santo André está localizada na APA (Extensão de Proteção Ambiental) de Santo Antônio, graças, segundo o decreto estadual que a criou em 1984, à “preço do ecossistema litorâneo que se estende da foz do rio João de Tiba até a foz do rio Jequitinhonha [em Belmonte, vizinha à Cabrália], caracterizado pela presença de várzeas associadas à vegetação de restinga costeira e pela existência de remanescentes da Mata Atlântica, muito uma vez que recife de corais, constituindo valioso patrimônio ambiental”.
Embora esteja a exclusivamente 35 km do agito de Porto Seguro, o entrada à vila de Santo André é dificultado pela urgência de se cruzar de jangada o rio João de Tiba, o que torna suas praias de águas calmas e mornas quase sempre vazias.
O resort Campo Bahia, mesclando luxo e conforto ao despojamento inerente à margem da praia (localizada a poucos metros dos chalés dos atletas), foi construído por empresários alemães sob medida para a seleção do país —a única entre as 32 participantes do Mundial a dispensar hotéis sugeridos pela Fifa para gerar sua própria hospedagem.
Em tese, o inverno brasílico se inicia em junho, mês em que começou a Despensa (realizada naquele ano entre 12/6 e 13/7). Mas não existe inverno naquele pedaço de litoral, e o sol quase onipresente no meio do ano não chega a ser escaldante.
Os craques alemães treinavam relativamente pouco, em horários de sol mais sossegado. No restante do tempo, faziam atividades físicas no próprio hotel, participavam de entrevistas coletivas no meio de mídia montado pela Federação Alemã de Futebol num resort vizinho e, uma vez que estampou um título desta Folha sobre a euforia dos estrangeiros na Despensa brasileira, curtiam a vida aloucado.
Passeavam de bicicleta, iam à praia (às vezes acompanhados de esposas ou namoradas) e conciliavam agenda turística e social com ações de marketing: passeio de paquete organizado por um patrocinador, visitante a uma escola municipal da vila (com recta à bate-bola), gravação de vídeos exaltando o Brasil.
A média com os brasileiros se estendeu ao traje de jogo: o uniforme número 2 da Alemanha para a Despensa era vermelho preto, uma homenagem ao Flamengo, clube de maior torcida do país (sim, aquele que eles usaram no 7 a 1).
“Estamos todos dominados pela ‘febre brasileira’”, resumiu, em entrevista à Folha, Schweinsteiger, um dos mais simpáticos do grupo. Em outra conversa exclusiva, o ex-jogador Bierhoff, portanto diretor técnico da seleção alemã e maior responsável pela decisão de instalar o QG do time em Santo André, lembrou que teve de vencer resistências.
“Estou 100% satisfeito. Houve ceticismo quando decidi vir, porque o meio não estava pronto. É um lugar peculiar, pelo clima e pela localização. Se você fica na cidade e vê somente casas, prédios, trânsito, rumores, não relaxa. E estamos numa dimensão que não é tão quente e abafada nem muito fria. É o lugar perfeito. Todos adoraram.”
Uma vez que repórter da Folha responsável pela cobertura da Alemanha durante toda a Despensa, fiz essas e outras entrevistas com o time que terminaria vencedor. Fiquei também hospedado na vila de Santo André, viajando para seguir de perto a seleção em todas as partidas.
Diferentemente dos alemães, que tinham uma jangada só para eles, muitas vezes os mortais tínhamos de esperar horrores pela embarcação à margem do João de Tiba — em uma ocasião, a travessia foi feita à noite, no mais puro breu, porque o capitão desligou o farol para forrar bateria. Cenas de jornalismo explícito, uma vez que dizia Clóvis Rossi.
Aliás, a primeira travessia alemã do rio só foi concluída graças a uma gambiarra: a maré estava baixa, e, na chegada a Santo André, o para-choques do ônibus do time —novo em folha, em contraste com a jangada velhusca— emperrou no concreto da rampa de desembarque, travando o veículo. O problema foi resolvido com a colocação de pranchas entre a jangada e a rampa.
O congraçamento com a população de Santo André (portanto com 800 habitantes) e o delícia dos alemães com seu QG improvável foram precedidos por algumas turbulências. A rua principal da vila teve de ser fechada no trecho do resort teutónico, gerando críticas dos moradores e a provocação de que o time construíra um “muro de Berlim” na minúscula vila.
Os construtores do resort tiveram, por um pacto com o Ministério Público, de remunerar uma ressarcimento ambiental por erigir na APA mesmo sem terem obtido todas as licenças ambientais. Moradores protestaram pela lentidão na promessa alemã de ajudar na reforma do campinho de peladas da vila.
O sucesso do esquadrão de Müller, Kroos, Schweinsteiger, Neuer, Klose, Lahm, Hummels etc. na campanha da Despensa foi amainando os problemas. Os alemães jogaram toda a primeira rodada no Nordeste, em partidas disputadas à tarde, com temperatura média de 28°: golearam Portugal por 4 a 0 na estreia na Estádio Nascente Novidade, em Salvador (três de Müller); empataram com Gana em 2 a 2 na Estádio Castelão, em Fortaleza; e bateram os EUA por 1 a 0 na Estádio Pernambuco, no Recife.
No primeiro jogo do mata-mata, viajaram até Porto Feliz e, sob 15°, eliminaram a Argélia por 2 a 1 na prorrogação. O choque térmico causou um pequeno surto de gripe no elenco, sem maiores prejuízos. Nas quartas de final, despacharam a França no Maracanã, 1 a 0.
O jogo seguinte foi aquele.
“Nunca vou olvidar do silêncio da madrugada do 7 a 1”, lembra hoje a jornalista carioca Léa Penteado, moradora de Santo André há 20 anos, ex-secretária de Cultura e de Informação de Cabrália, agitadora turístico-cultural e espécie de embaixadora informal da região. Até ali, as noites das vitórias alemãs eram de sarau. “Daquela vez, eles voltaram muito tarde, e creio que houve uma recomendação para que chegassem em silêncio. Achei muito respeitoso”, diz ela, vizinha do Campo Bahia.
A antiga concentração virou um resort com o mesmo nome, com as diárias mais baratas a partir de aproximadamente R$ 2.500. Na ingressão, uma placa informa que ali funcionou uma “arranjo solene” da Despensa. Na praia, a barraca da Santinha mantém duas bandeiras, uma do Brasil e uma da Alemanha.
Um dos garotos que bateram esfera com os craques alemães na escola municipal envolveu-se com drogas e pequenos crimes e teve de fugir da vila para não ser recluso. Parece um caso vasqueiro, porque o isolamento mantém a vila pacata. Em Cabrália, poucos quilômetros adiante, na outra margem do rio João de Tiba, a criminalidade é um problema crescente nos últimos anos —assim uma vez que os conflitos fundiários têm levado violência à zona rústico da região.
Os alemães construtores e donos do Campo Bahia compraram também o outro resort de Santo André, onde funcionou o meio de mídia. Segundo Léa Penteado, os empreendimentos, sobretudo o primeiro, funcionam uma vez que escolas de hotelaria e geram ocupação para a região.
Não houve um boom de pousadas, mas de moradores de fora. “O que mudou a vida cá não foi a Alemanha, foi a pandemia, quando começou uma procura enorme por terrenos e casas”, diz a jornalista.
A principal novidade desde os alemães é a construção de um “condomínio restrito”, conforme a propaganda da incorporadora, com 56 lotes (de 800 m² a 1.500 m²), “beach club com piscina, fitness, dimensão gourmet e lounge spa com sauna e massagem” e uma “charmosa rua de lojas de grifes e artesanato rústico típico da Vila de Santo André”.
Moradores tentam na Justiça minimizar os impactos ambientais do empreendimento, à litoral do trecho definido pelos vendedores uma vez que “o sigilo mais muito guardado do extremo sul da Bahia”.
ANATOMIA DE UMA QUEDA
ANTES
Jogando em moradia, o Brasil era tido uma vez que predilecto na Despensa de 2014. O treinador era Luiz Felipe Scolari, o mesmo do penta, em 2002.
Na primeira temporada, o Brasil derrotou a Croácia (3 a 1), empatou com o México (0 a 0), e venceu Camarões (4 a 1). Nas oitavas de final, depois empate (1 a 1), vencemos o Chile por 3 a 2 nos pênaltis. Nas quartas, eliminamos a Colômbia por 2 a 1
DURANTE
No Mineirão (BH), em 8/7, Brasil e Alemanha se enfrentaram na semifinal. Às 17h daquele dia começava o 7 a 1, pior sinistro do esporte brasílico.
Gols da Alemanha
O time abriu o placar do jogo aos 11 minutos (Thomas Müller). Numa inacreditável sequência de seis minutos marcou mais quatro: aos 23 (Miroslav Klose), aos 24 (Toni Kroos), aos 26 (de novo Kroos) e aos 29 (Sami Khedira). No segundo tempo, o 6º gol veio aos 69 minutos (André Schürrle). E o fatídico 7º apareceu aos 79 (Schürrle, mais uma vez)
Gol do Brasil
O solitário, pranteado e mais desprezado gol brasílico em uma Despensa veio literalmente aos 45 do segundo tempo, no último minuto regulamentar, dos pés do meio-campista Oscar
DEPOIS
Em 12/7, no Estádio Pátrio de Brasília, Brasil terminou o torneio em 4º lugar, depois novidade surra: 3 a 0 para Holanda. Desde portanto, a seleção brasileira teve poucos momentos de fulgor. Terminou em 6º lugar na Despensa de 2018 e 7º na de 2022.
Na final de 2014, a Alemanha venceu a Argentina por 1 a 0, na prorrogação, no Maracanã (Rio) e conquistou seu tetracampeonato