Nos diários de Mércia Albuquerque (1934-2003), as páginas registram, com precisão, um tempo que não se apaga. Essa é a base de “Lady Tempestade”, onde Andrea Beltrão interpreta os textos da advogada que defendeu presos políticos durante a ditadura militar no Nordeste.
A dramaturga Sílvia Gomez estrutura o espetáculo em camadas, assim uma vez que os diários que o inspiram. Seus diálogos têm a mesma densidade dos escritos de Mércia: simples na superfície, mas profundos quando observados de perto. A conferência com falésias — marcas deixadas pelo mar — não é casual. Tanto nos manuscritos da advogada quanto nas formações rochosas, o que parece um simples traço carrega histórias de resistência.
Sob a direção de Yara de Novaes, a peça evita transformar o pretérito em monumento. As cenas mantêm os relatos de Mércia vivos, tratando prisões arbitrárias e buscas por desaparecidos não uma vez que registo, mas uma vez que feridas ainda presentes.
Andrea Beltrão interpreta “A.”, uma mulher contemporânea que recebe os diários por correio. Em alguns momentos, ela recua, deixando as palavras de Mércia falarem por si; em outros, avança, quando a emoção toma conta. Em certa cena, o texto dialoga com “Antígona” (peça que Beltrão já interpretou, premiada pela APCA), questionando o recta de uma família enterrar seus mortos — mais uma mulher confrontando o Estado.
O espetáculo não é um tirocínio de nostalgia, mas um revérbero do presente. Novaes coloca “A.” diante de notícias atuais sobre violência, incluindo um áudio real de uma mãe tal qual rebento foi morto pela polícia em 2022. Os diários de Mércia revelam padrões que se repetem, alertando para o agora.
“Lady Tempestade” mostra que lembrar o pretérito é entendê-lo uma vez que um processo contínuo. No final, quando Andrea espalha páginas, fotos de desaparecidos e recortes de jornal pelo palco, fica simples: esses registros são uma vez que marcas na rocha — podem descolorir, mas nunca somem de vez.
O espetáculo encerra temporada no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro, no dia 27 de abril. Antes de estrear em São Paulo no palco do Sesc Consolação no dia 30 de maio, Andrea fará quatro apresentações no Teatro Simões Lopes Neto, em Porto Contente (RS).
Três perguntas para …
… Andrea Beltrão
A figura da “mulher geral” que realiza atos extraordinários é mediano na peça. O que essa perspectiva nos ensina sobre heroísmo e resistência?
“Lady Tempestade” conta a história de Mércia, uma professora de escola pública que é atravessada por uma situação real, concreta, quando se depara com um varão, Gregório Bezerra, ser atado a um jipe e arrastado pelas ruas de um bairro do Recife, sangrando e apanhando, depois de ter sido torturado. Esse é o ponto de viradela da vida de Mércia.
É quando ela decide tutelar presos políticos e também presos comuns sem a mínima requisito de se defenderem. Não acho que a peça ensine sobre heroísmo ou resistência. A peça nos apresenta uma mulher, que até portanto era uma desconhecida para mim, que tem a coragem e a perseverança que poucos têm. Mércia é uma mulher extraordinária.
Qual a sua percepção sobre o papel da arte, e especificamente do teatro, em resgatar e dar voz a histórias muitas vezes silenciadas?
São muitas histórias silenciadas. A peça fala também sobre o libido de esquecimento. E olvidar não é uma opção, é a prolongamento do silêncio. Mas no teatro, não basta exclusivamente que a história seja importante, e muitas, milhares de histórias são muito importantes. Mas o teatro exige que a história seja tratada uma vez que teatro. Aí está o grande pulo do gato de Yara de Novaes e de Sílvia Gomez. Elas conseguiram transformar uma história real e terrível numa peça de teatro, com humanidade e também esperança.
Porquê você enxerga o papel da mulher no teatro e na sociedade, mormente em contextos de luta e resistência uma vez que o retratado na peça?
A mulher está em todos os lugares. Na história, na resistência, na vida. “Lady Tempestade” conta a história de uma de nós. Mas somos muitas e infinitas.
Teatro Poeira – rua São João Batista, 104, Botafogo – Rio de Janeiro (RJ). Qui. à sáb., 20h. Dom. 19h. Até 27/4. Duração: 70 minutos. A partir de R$ 60 em sympla.com.br
Teatro Simões Lopes Neto – rossio Marechal Deodoro, s/n, Meio Histórico – Porto Contente (RS). De 1º a 4 de maio. Qui. à sáb., 20h. Dom. 18h. A partir de R$ 80 em eleventheatrosaopedro.eleventickets.com
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul aquém.