A teoria inicial era fazer um solilóquio. O ator Ricardo Bittencourt procurou o conterrâneo baiano Luiz Marfuz, para dar forma ao espetáculo sobre padre Pinto, personagem polêmico que por 32 anos esteve primeiro da Paróquia da Lapinha, em Salvador. Ao longo do processo, perceberam que um solilóquio era pouco para história do clérigo.
Marfuz, que assina a dramaturgia e a direção da peça, adicionou um elenco de 13 atores, além de Ricardo Bittencourt, uma vez que o padre Pinto, e Sérgio Marone, um emissário do Vaticano, e uma orquestra com três músicos, para criar o que classifica uma vez que “quase um músico”.
O diretor promoveu um intercâmbio entre artistas de São Paulo —integrantes do Teatro Oficina— e da Bahia, para montar “Padre Pinto: A Narrativa (Re)Inventada”, que estreou sexta (24), no Sesc Pompeia, onde cumpre temporada até 23 de fevereiro.
O padre José de Souza Pinto era também bailarino e artista plástico. Durante o tempo na Paróquia da Lapinha, revitalizou a Sarau de Reis e dedicou-se a diversas ações comunitárias e sociais. Ele tinha um espírito livre e, não vasqueiro, esbarrava nos dogmas e normas da Igreja.
Abraçou a cultura dos povos originários e das religiões de matriz africana, por exemplo. Ficou mais famoso em 2006, quando rezou missas vestido de indígena e de Oxum, orixá das águas doces. Incomodou. O evento ocupou a mídia, gerou polêmica e uma investigação que envolveu o Vaticano.
O veste de padre Pinto não esconder a homossexualidade e ter beijado na boca Caetano Veloso, também não ajudou. Ele acabou removido da Lapinha e retraído a um retiro, onde viveu seus últimos 13 anos, até sua morte, em 2019.
Marfuz ancorou a narrativa em três atos: “Ascenção e Glória”, “Queda e Explosão” e “O Silêncio de Deus”. Também divide o espetáculo, com possante caráter onírico, em três planos: o material, que situa o padre e aqueles com quem convivia; o incorpóreo, onde estão os reis magos, santos, sombras e outros personagens, e o vão de passagem, que liga esses dois mundos onde transitam a figura do canjerê e as gárgulas.
Que ninguém espere uma biografia ou tom documental. A peça é mais uma celebração, unindo sagrado e temporal, da figura superabundante do padre. “Não é uma biografia, não tínhamos uma vez que reconstituir. Não tivemos chegada aos documentos da Igreja, por exemplo”, explica Marfuz.
“Mas fizemos pesquisa de campo, ouvimos fiéis, gente ligada a ele. Padre Pinto é apresentado uma vez que um porta-voz contra a intolerância religiosa, racial e sexual. A peça mostra leste ser transgressor, primeiro de seu tempo, mas também suas contradições.”
Para Ricardo Bittencourt, foi justamente o cancelamento do padre que o motivou a racontar a história, em um processo de construção iniciado em 2023. “Ele era uma figura extraordinária e sempre me comoveu leste silenciamento.
Ele cita o clérigo, quando afirmou que “a Igreja não tem o tamanho dos meus sonhos”, a título de ilustração. “É por conta dessas pessoas que ousam sonhar demais que eu me mobilizei para apresentar esse personagem”, diz Bittencourt. “Padre Pinto é um farol neste momento em que o mundo vai para um lado intolerante e retrógrado.”
Ator há mais de duas décadas ligado ao Teatro Oficina, Bittencourt voltou há pouco a habitar o apartamento onde morava com José Celso Martinez Corrêa e Marcelo Drummond. O lugar foi reformado depois o incêndio que vitimou o fundador do Oficina.
O vetusto gabinete do colega é agora seu quarto. “Tínhamos uma convívio muito intensa. Sinto uma saudade enorme.” A peça, idealizada por Bittencourt, Marfuz e Maurício Magalhães, é dedicada a Martinez Corrêa e à advogada Cris Olivieri.
Ator convidado, Sérgio Marone vive o emissário do Vaticano com a missão de resolver o porvir de padre Pinto. O ator não conhecia a história. “Fiquei fascinado. É uma história muito brasileira, com todo o sincretismo religioso. É a rostro do Brasil”, acredita.
Ele conta que não foi fácil criar o personagem conservador. “Foi difícil trazer a teatralidade contida para leste personagem inflexível.”
Ao longo de mais de duas horas, Padre Pinto é resgatado do silêncio e do esquecimento em um espetáculo fábula —em cena ele é uma geração dos reis magos— para, com a irreverência e a exuberância que marcaram a sua vida, pregar pela tolerância.