Peça De Tchékhov Revê Noção De Palco Com A Cia.

Peça de Tchékhov revê noção de palco com a Cia. da Memória – 15/02/2025 – Ilustrada

Celebridades Cultura

O chegar do trem ofusca o burburinho dos criados e anuncia o retorno de uma poderosa família de aristocratas. Gerações e gerações conectadas por fortes laços de sangue deixam os vagões. Elas voltam à residência que um dia representou suas conquistas. Mas os tempos são outros e talvez seja a hora de vender a propriedade junto de seu principal tesouro.

Na montagem apresentada pela Companhia da Memória, “O Jardim das Cerejeiras” se confunde com a plateia. Balões de diferentes cores se espalham por entre os assentos e colocam o próprio testemunha uma vez que segmento do espaço título. Secção do público divide o palco com o elenco numeroso e uma rampa se projeta sobre assentos interditados do Teatro Anchieta, no Sesc Consolação, em São Paulo.

São escolhas que propõem outro contato entre os dilemas explorados por Anton Tchekhov —responsável da peça escrita há mais de um século— e quem os testemunha. Assombrada pela possibilidade de perder o jardim, a matriarca Liuba, interpretada por Sandra Corveloni, percorre a estrutura que amplia o envolvente cênico.

Gestos e expressões se aproximam e ela confidencia memórias, medos e segredos. O atuar expansivo, capaz de inferir as últimas fileiras e normalmente exigido pelas artes cênicas, dá lugar a introspecções mais ponderadas, uma vez que se em uma conversa com um velho sabido ou companheiro próximo.

“Sinto que o testemunha está à procura daquilo que é genuíno, mas não necessariamente real. Eu queria descartar pensamentos ideológicos, absolutos, para falar das complexidades humanas. E a imagem da matrioskha nos ajuda a perceber que ninguém é um só e a investigar essas subjetividades”, diz o diretor Ruy Cortez.

Fundador da Companhia da Memória, ele cita a boneca russa, desmontável em figuras menores que se refugiam dentro de outras, uma vez que símbolo do paixão e das relações que determinam o espetáculo.

Com exceção da rampa ambiciosa, o cenário é essencialmente simples. Corpos vêm e vão pelo galeria branco ocupado por um punhado de mesas e cadeiras. O elenco inteiro está sempre à vista e, na falta de paredes, tecidos ou demais intervenções cenográficas, os cômodos são sugeridos por ações e estados emocionais.

É um espaço definido pelas trocas entre os artistas e pela sobreposição de conversas e devaneios. Tudo coexiste em uma “teia de afetos”, termo cunhado pela direção, que permite o maduração dos personagens e a preservação do lirismo presente no texto original.

“Durante as preparações, eu fingia ser capaz de espionar o pensamento de todos ali. Ouvia as impressões das minhas filhas [Vária e Ánia, personagens de Gabrielle Lopes e Beatriz Napoleão] em relação ao meu pretérito e consegui estabelecer uma conexão próprio com cada um. Tchekohv consegue ser assustadoramente próximo”, afirma Corveloni.

Pressionada a se desfazer de suas riquezas em um leilão, sua personagem entra em atrito com Lopakhine, vivido por Caio Juliano, varão preto, agora rico, e progénito de servos.

Se a matriarca tenta preservar o jardim, o empresário encontra a oportunidade de investir num terreno para veraneio. São sinais de um horizonte que só um consegue enxergar, ele acredita, ressentido pelo pretérito dos familiares.

“Existe uma cena em que eu me coloco entre Lopakhine e Ánia, que nessa versão é negra. Vejo isso uma vez que uma metáfora para o Brasil de hoje, que precisa mourejar com essa legado da escravatura e da devastação. Logo ao me guiar ao público, eu vejo a Amazônia, a Mata Atlântica e todas as árvores do mundo. É uma vez que se ousassem destruir todos nós e nossa nascente de vida”, diz a atriz.

Apesar do diálogo com o presente, a força da montagem também está no retorno ao pretérito. Com a ajuda de Rodrigo Alves do Promanação, perito em Tchekhov, Cortez encontrou uma antiga cena que teria sido cortada da primeira encenação do ‘Jardim’, dirigida por Constantin Stanislávski.

Subestimada pelo dramaturgo russo, a sequência conclui o segundo ato ao reunir Firs, o ancião da família, e Charlotta, governanta de origem mambembe e perito em mágicas interpretada por Ondina Clais.

O mais velho é vivido, ao mesmo tempo, por José Rubens Siqueira e Luiz Amorim, dupla que representa o limiar por qual Firs transita, perdido entre lapsos da idade e a consciência que insiste em permanecer.

“A Charlotta é uma personagem que desaparece no texto. Ela desaparece, aparece, se transforma. Ela se torna a própria mágica, uma vontade pura. E logo se encontra com Firs, que também está desaparecendo. Eles compartilham os seus passados enquanto tentam entender suas naturezas”, diz Clais, também diretora artística da Companhia da Memória.

Folha

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