“Não devemos olvidar os nossos irmãos da Vila Socó, transformados em cinzas, lixo em pó. A tragédia da Vila Socó mostra uma vez que o trabalhador é explorado, esmagado sem nenhum dó”.
Foi logo que, em 1984, o compositor Gilberto Mendes (1922-2016) descreveu a peça que compôs para coro chamada Vila Socó Meu Paixão. A peça foi sua forma de homenagear as vítimas do incêndio ocorrido na madrugada dos dias 24 e 25 de fevereiro de 1984, em Cubatão, e que devastou a população que vivia no bairro.
Em prova ao pianista, professor e camarada José Eduardo Martins, publicado na edição de dezembro de 1991 da revista Estudos Avançados, da Universidade de São Paulo (USP), Gilberto Mendes destacou ter escrito a música não só uma vez que uma homenagem, mas também uma vez que denúncia. “O descaso não tem termo”, escreveu o compositor na era.
“Com minha música, pretendi ter feito alguma coisa in memoriam dos mortos por aquela verdadeira explosivo de Hiroshima que foi a explosão da Vila Socó. Por isso a memorial, no título, do [diretor francês] Alain Resnais, da imensa piedade pelo sorte dos homens, que seu inesperado filme [Hiroshima meu amor] comunica. Meu colega Celso Delneri dirigia um coral feminino no Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da USP e me havia pedido uma música. O horror diante da terrível notícia deu-me o impulso”, comentou Mendes.
Vila Socó Meu Paixão não é a única frase cultural que procura manter viva a memória daquele incêndio que, oficialmente, vitimou 93 pessoas, mas pode ter realmente matado 508. Outras manifestações culturais uma vez que o teatro e o cinema também têm buscado resgatar essa memória.
Teatro
Esse é o caso, por exemplo, da peça Vila Socó, do coletivo 302, que estreará ainda neste ano. A peça é secção de uma trilogia industrial sobre a cidade de Cubatão, que teve início com uma peça sobre a Vila Parisi, passou pela Vila Fabril e que se encerra com a Vila Socó. “Essa história representa a gente narrar um pouco sobre nossos ascendentes, sobre nossa cidade e entender uma vez que chegamos nesse ponto em que estamos hoje na cidade de Cubatão. Para nós, artistas, é uma maneira de se fazer Justiça nessa cidade e sermos contemporâneos de teatro”, explicou Matheus Lípari, 29 anos, performer e iluminador da peça.
Essa memória vem sendo reavivada há mais de um ano pelo coletivo por meio de pesquisas e depoimentos de pessoas que viveram o incêndio. E contará até mesmo com uma experiência pessoal. Um dos atores e diretores do coletivo, Douglas Lima, 34 anos, por exemplo, nasceu pouco tempo depois do incêndio e passou sua puerícia na Vila Socó. “Minha mãe e meu pai moravam na Vila São José (antiga Vila Socó) na era do incêndio. São sobreviventes”, contou ele à Sucursal Brasil.
Cinema
Antes da peça, o curta documental Uma Tragédia Anunciada, dirigido pelo produtor audiovisual Diego Moura e que pode ser visto gratuitamente no YouTube, já buscava reavivar as lembranças e consequências daquele incêndio. Exibido pela primeira vez em 2014, quando a tragédia completou 30 anos, Uma Tragédia Anunciada entrevista diversas pessoas que presenciaram o incêndio.
“Eu cresci no bairro de Vila São José, a poucos metros de onde a tragédia aconteceu. Logo, eu cresci ouvindo histórias, vendo vídeos registrados nas antigas fitas VHS e, em 2010, ingressei na faculdade de cinema. Com o tempo, percebi que a memória dessa memorial estava se perdendo, os jovens não conheciam a história. O curta fez secção inicialmente de um mero trabalho para faculdade, mas acabou se tornando o impulsor para que a memória das vítimas da tragédia e da cidade fossem relembrados e, mais do que isso, para que fosse ensejo uma novidade discussão sobre os efeitos da industrialização desenfreada que aconteceu na cidade de Cubatão, nas décadas de 60 e 70, e que culminou nessa tragédia na dez de 80”, disse Moura, à Sucursal Brasil.
Durante a produção do documentário, Moura se surpreendeu com os depoimentos das vítimas do incêndio. “Durante as gravações, conheci muitas histórias impactantes e, se há um tanto que me revolta até hoje, foi uma vez que esse processo foi transportado na era da tragédia. Houve preterição totalidade das autoridades: nos dados oficiais dizem que morreram ‘somente 93 vítimas’, porém os relatos das pessoas do lugar dizem que foi muito mais que isso”, aponta.
Saber o pretérito
A intenção da música, da peça e do documentário para cinema sobre a Vila Socó é impedir o apagamento de um incêndio que pode ter sofrido uma tentativa de abafamento durante a ditadura militar. “Reduzir o impacto da tragédia tinha três objetivos básicos: evitar a repercussão vernáculo e internacional para a empresa [Petrobras], reduzir o dispêndio das indenizações e prometer a impunidade. E isso tudo foi feito”, avaliou o legisperito e jornalista Dojival Vieira, durante prova à Percentagem Estadual da Verdade de São Paulo, em 2014.
Mas levar a Vila Socó para os palcos e para a tela grande é também uma forma de buscar entender o pretérito e evitar sua repetição no porvir. “O papel da arte em narrar uma história é, para mim, sempre trazer à tona as histórias em si para que elas não sejam esquecidas, para que o apagamento não aconteça. O papel da arte é fazer com que essa história não seja esquecida e para que as futuras gerações possam lembrar disso e saber sobre o que aconteceu, de vestimenta, nesse dia. Com essa história, vamos tentar resgatar memórias, resgatar a ancestralidade e fazer com que isso não seja esquecido e para que não aconteça nunca mais”, disse Sandy Andrade, 30 anos, atriz e produtora da peça teatral.
“Cada vez mais, a arte e o cinema são usados para trazer para a atualidade temas que foram deixados de lado. Cada vez mais são produzidos conteúdos sobre nosso pretérito. E mormente nesse caso da Vila Socó, o cinema foi a utensílio que tínhamos para trazer essa memória tão repugnante. Eu acho que as vítimas mereciam isso, uma vez que uma forma de homenagem. Essas mesmas vítimas que foram esquecidas e negligenciadas pelas autoridades. Acredito que um dos papéis da arte é esse: mostrar e lembrar os nossos erros para que não sejam cometidos novamente”, acrescentou Moura.