Percival Everett: Debate sobre raça está menos sofisticado – 21/06/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

De repente, pessoas brancas começam a ser degoladas brutalmente com arame farpado. O principal suspeito é um varão preto que sempre está na cena do transgressão, segurando os genitais do sucumbido na palma da mão. Só tem um probleminha que confunde a polícia: ele também está morto.

“As Árvores”, thriller sanguinolento que abusa de cenas assim, é a estreia do comemorado plumitivo afro-americano Percival Everett nas livrarias brasileiras —se o nome soa familiar, talvez seja porque o responsável veterano teve um pico de glória recente quando seu livro mais divulgado, “Erasure”, virou o filme “Ficção Americana”, indicado a cinco Oscar.

Assim uma vez que naquele romance de 2001, cá há uma sátira das mais sardônicas sobre as relações raciais. Mas agora, escrevendo duas décadas depois, o responsável pesa mais a mão na violência e no sem razão.

Quando fica evidente que os assassinatos em série têm alguma coisa de retaliação contra a longa história de linchamentos que vitimaram negros no sul dos Estados Unidos, uma personagem idosa pede a vocábulo. “Se esses espíritos estão mesmo detrás de vingança, vai ter muito mais mortes por cá. Eles vão se esbaldar por cá.”

Por que o responsável decidiu aditar temperos sobrenaturais a um prato pleno de realismo? “Pense em uma vez que é sem razão um mundo em que todo um grupo de pessoas precisa andejar preocupado em ser parado na estrada e morrer. Isso é maluco”, diz o plumitivo de 67 anos, brando e professoral, durante entrevista por vídeo à Folha.

“Não importa o que eu escrevesse, uma nave espacial poderia entrar na história, não seria mais estranho que o roupa de que nós contratamos pessoas para nos proteger [policiais] e elas nos matam. Não dá para permanecer mais sem razão que a verdade para os jovens negros.”

O sem razão é irmão do humor, uma instrumento que Everett domina com destreza —não com piadas, mas com ironia, uma vez que ele mesmo define, para relaxar os leitores antes das coisas mais duras.

Ao ser perguntado se hoje há uma escassez maior de material satírico sobre raça, o responsável diz que estamos mais “informados e sensíveis” sobre esse ponto, mas também “menos durões e menos sofisticados, de certa forma”.

Everett vê alguma “tendência fascista” em todo o espectro político americano que “tornou a polarização o principal oração”. “Eu não fico muito online para entender o que chamam de cultura do cancelamento, mas escuto que todos estão prontos para pular no pescoço do outro por alguma coisa que disseram, em vez de entrar de roupa num debate.”

“Não sei se você conhece o filme ‘Banzé no Oeste’”, continua o professor da Universidade do Sul da Califórnia, em referência a uma farsa dirigida por Mel Brooks em 1974. “Não conseguiríamos fazer isso hoje. E tem poucos trabalhos tão espertos sobre raça quanto esse, muito por pretexto de Richard Pryor. É um filme com problemas, mas tem um diálogo ligeiro sobre as diferenças raciais que é refrescante.”

A sátira é enxurrada de piadas sobre raça, de um jeito que escancara o tamanho do nonsense, do disparate da coisa. “Se você não aceita o sem razão da vida, não vai muito longe. E é isso que temos hoje. Todo mundo quer estar patente. Ninguém está satisfeito em só permanecer confuso.”

Everett se especializa nessa nuance de incerteza, evitando se engajar num oração pronto. Dá para manifestar que o argumento inteiro de “Ficção Americana” —de quem livro-base será enfim traduzido e editado no Brasil em 2025— é sobre uma vez que a negritude não é um conjunto monolítico.

Seu protagonista, Monk, é um intelectual goro com a maneira uma vez que uma escritora negra faz sucesso com um livro que, para ele, reforça todos os piores chavões sobre o que é ser preto. Logo, ele decide vergar a aposta e lançar um romance estereotipado uma vez que piada —para sua surpresa, faz sucesso ainda maior.

Uma denúncia recorrente contra o filme de Cord Jefferson, lançado no ano pretérito, é que soava datado: se a sátira de Everett era ácida e pertinente quando o romance foi publicado, agora o cenário era outro, mais avançado. Ao ouvir isso, o plumitivo diz que o mundo mudou, mas nem tanto.

“Aumentar a quantidade de escritores negros no mercado não muda realmente o problema”, afirma. “Olhe a semblante dos executivos nas editoras. Não reflete a população, nem mesmo a população de escritores. As decisões ainda são tomadas com base neles. E ainda persiste a crença de que há uma literatura afro-americana, o que é uma visão interesseiro e com viés racial.”

O plumitivo usa o paralelo de uma amiga sua, cineasta negra que fez sucesso dirigindo uma comédia romântica. Depois que seu filme estourou, passaram a chover ofertas do mercado. “Mas eram biografias de vítimas de violência policial ou histórias de escravidão”, diz, deixando evadir uma risada. “Não foi isso que ela fez. Era o que achavam que ela deveria estar fazendo.”

Será que o próprio Everett já se sentiu tentado a evitar discutir raça nos seus livros para não ser carimbado num estereótipo?

“Por que evitar? O traço mais definidor da experiência americana é a raça. Não há um só trabalho artístico válido nessa cultura que não aborde a raça de alguma maneira. Mesmo a exiguidade da teoria de raça é uma sentença política do que a América branca quer ver. Isso não quer manifestar que toda situação tem componente racial. Mas esses são os Estados Unidos.”

Everett conecta essa expectativa de um país branco a Donald Trump, um personagem que aparece pelas beiradas de “As Árvores” até que seu fragor fica gritante demais para ignorar.

“Não quero dar muito crédito a ele, que é meramente um sintoma de alguma coisa maior, mas um sintoma terrível e pernicioso. É estúpido o suficiente para ser perigoso, representa a arrogância do racismo na nossa cultura. Eu estava sentindo isso enquanto escrevia e não quis tirar do livro.”

Os personagens brancos do romance, homens e mulheres com poucas qualidades e muita moleza, podem ser lidos sem transe uma vez que caricaturas de Everett para o trumpismo.

“Não acho que a maioria dos americanos seja assim. Acho, sim, que a maioria dos americanos é preguiçosa. E que fecha seus olhos, complacente, para a verdade diante de seus olhos.”

Folha

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *