As periferias de Sâo Paulo são locais com cultura pulsante e viva. Mesmo sem suporte do poder público, surgem por lá, geralmente em bares e outros locais de encontro, os saraus onde os artistas, músicos, poetas, dançarinos expressam suas sensibilidades e visão de mundo.
Outro fenômeno também presente são os chamados Slams, batalhas de poesias, onde os poetas apresentam seus textos para um jurado que é formado na hora pelo público presente. A teoria surgiu do poeta norte-americano Marc Kelly Smith, que criou esse evento para estimular a prática poetica entre o povo. Cá no Brasil a teoria foi replicada por Roberta Estrela D’dilúculo que criou o Zap Slam em 2008, e atualmente há mais de 50 Slams em todo o país.
É dentro desse contexto que apresentamos a poete Midria, de 24 anos, formada em ciências sociais pela USP e faz atualmente mestrado em antropologia. Midria tem trajetória no Sarau do Vale e no ZAP Slam, onde venceu a disputa de 2018. Tem três livros publicados e seus textos discorrem de temáticas que vão desde o racismo, a solidão da mulher negra, auto desvelo, paixão e espiritualidade.
Mas Midria é sobretudo uma psique sensível, na conversa que tivemos na sua vivenda sentimos que não é provável permanecer indiferente diante das palavras e ideias que ela compartilhou conosco.
E começamos cá com a Midria recitando um de seus primeiros sucessos: Paulistana Periférica.
“Uma vez um garoto de 10 anos foi até o Museu da Língua Portuguesa
Na ingressão pediram, escreva:
“Nome, e-mail e cidade”
Cidade, cidade, cidade?
Cidade Tiradentes!
O garoto de dez anos era paulistano e nem sabia
Mas eu indago, enfim de contas
O que é ser paulistano? O que é ser paulistano? O que é ser paulistane?
E o que é São Paulo?
É ou não é uma cidade?
Mas independentemente da idade o que dá pra se ver é que tanta gente que
sente uma vez que se não pertencesse a essa Pauliceia desvairada
É que tem muita gente que não se apropria desse espaço”
“Midria é uma pessoa não binária, que nasceu e cresceu na periferia de São Paulo, no extremo leste da cidade, num bairro chamado Recanto Vertissol. Foi nesse bairro que eu estudei, conheci os movimentos literários da periferia, os saraus, privativo com o Sarau do Vale.”
Danylo Paulo, idealizador do Sarau do Vale
“O nome Sarau do Vale porque ele nasce no bairro Jardim Vale do Sol, que faz segmento do província do Iguatemi, que é um subdistrito de São Mateus. E ali em 2015 a gente começa as atividades. A gente já conhecia muito os amigos que eram artistas e que são artistas, outros foram se desenvolvendo ao longo do tempo e aí foi dessa forma.”
“E aí uma vez que funciona. A dinâmica inicial era mais ou menos assim: convidava artistas, primeiro amigos, da nossa rede de contatos, para se apresentar. Tocavam violão, uns faziam cover, tinha música autoral, alguns poetas. Uns meses depois a gente começou a invitar pessoas de longe e priorizar também o lançamento de livros, fanzines, antologias poéticas, lançamento de álbuns e assim ele permaneceu por mais de cinco anos.”
“Um Slam de brincadeirinha assim, na semana de Ciências Sociais, que quem conduziu foi o Eugênio Lima, uma das pessoas que trouxe o Slam para o Brasil, o Zap, o primeiro Slam brasílico foi criado pelo Bartolomeu – o Eugênio é uma dessas pessoas que faz segmento do núcleo – , e de repente eu estava lá entendendo quais eram as regras história, e aí foi todo um processo de uma exórdio de mundo. No ano seguinte a gente criou um Slam na faculdade para recepcionar a galera negra, indígena, por conta das cotas. Foi muito um processo de ir conhecendo e criando e também contribuir com o sarau à medida que me descobri lá uma vez que poete.”
Participantes do ZAP Slam de 2010 registrado pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos
“Um, dois, três Zap.
Zap leva meu raciocínio a pensar rápido.
É zapt-zupt. É zaz,
uma vez que uma projéctil, uma fala rápida, ansiosa, disparada.
Mas a tia falou, falou que não ia ser fácil.
Navego nitidamente num mar sólido, intransponível”
Roberta Estrela D’dilúculo – Idealizadora Zap Slam
“É uma guerra de trova falada, uma competição de trova falada, que tem três regras básicas: poemas próprios, no sumo três minutos, sem séquito músico. Tem um júri popular, que é escolhido na hora, que dá notas de 0.0 a 10.0, o que pode parecer uma teoria meio estranha, dar nota para poema. Mas não é para o poema escrito a nota, mas para a performance. Uma vez que o poeta, poete, está resolvendo as palavras, o corpo, o público.”
Performance de Midria na Flip 2022
“Ai, gente, quanta notícia ruim, clima bad, clima tenso
Eu acho que a gente está precisando de uma limpeza
Energética, poética, moral
Eu nasci em 1999
Lula foi eleito pela primeira vez em 2002
Eu sou uma párvulo nascida do vermelho
Tenho estrela tatuada na minha testa
que reflete meu chakra coronário
coligado com as políticas de assistência social
Eu sou uma jovem mística, muito mais para libertário do que para petista
Mas tenho que assumir que crescer na Era PT tinha saudades da alegria
E de esperança de um Brasil párvulo
Vocês estão sentindo essa pressão no ar, na atmosfera?
Talvez seja um momento de usar um pouco de Reiki, fazer uma reflexão coletiva
Vamos para a yoga da reparação histórica”
“Eu sempre em qualquer momento das entrevistas acabo falando da minha avó, porque os textos que escrevo eu quero que em qualquer lugar consiga falar com a minha avó. Minha avó é essa pessoa debochada, uma pessoa que, pelo menos comigo, ela está sempre rindo, sempre fazendo uma gracinha. Acho que o jeito de penetrar diálogos é rindo, pensando sobre eles com leveza. A gente não precisa levar a ferro e queimação. Não fui uma pessoa criada assim nesse contexto. Sempre tive que me desdobrar um pouco, ser várias versões de mim para conseguir dar conta, de uma família inter-racial e de outros embates que eu estava ali vivendo, crescendo. Portanto, ter flexibilidade e rir da vida, rir dos problemas para não se naufragar neles, eu acho que é muito importante. Acho que é uma maneira de proferir também que a gente e melhor do que isso. A gente consegue ser melhor do que todas essas incongruências, todas essas faltas de conformidade que o mundo tem ainda.”
“Uma vez que eu disse anteriormente, a região que a gente mora, o Iguatemi, é um dos bairros mais carentes de São Paulo. O IDH baixíssimo, o índice de evasão escolar muito cimo, o índice de violência também muito cimo. E ter o Sarau do Vale cá a gente viu que impulsionou muita gente a estrear a não só querer redigir, mas querer produzir música, a montar coletivo, eventos, porque eles viram que a iniciativa nasceu dos próprios moradores. Não veio do poder público para o bairro. Nasce da gente, de pacto com as nossas necessidades e a gente vai girando. Quando a gente rodou a cidade agora percebeu muita criancice, juvenil trazendo as escritas deles para nós, apresentando.”
“Eu tenho uma relação de um pouco de paixão e ódio com a cidade, mas também fico pensando: às vezes as pessoas corporificam e fazem da cidade uma sujeita. ‘São Paulo é isso, São Paulo é aquilo’. Mas de que São Paulo as pessoas estão falando? Ao mesmo tempo que a gente está nesse sistema que mói a gente, essa forma de gerir a cidade, que é muito dolorosa, eu entendo que a maior potência e a maior venustidade está nas pessoas, naquilo que a gente faz, naquilo que a gente construiu. Eu sabor muito de São Paulo enfim das contas. Fico meio brava quando falam: ‘ai, você é de São Paulo, que saco. O que fazer de São Paulo? Ir embora’, mas e se a gente buscar ressignificar esse espaço? Ter relações e trocas mais justas dentro dessa cidade. Isso é provável.”
Leste Radiodocumentário foi feito em parceria com o Radiojornalismo EBC e a Radioagência Vernáculo. Ouça os outros episódios da série sobre os 470 anos de São Paulo.
* A reportagem é de Nelson Lin, a produção de Guilherme Strozzi, coordenação de processos de Beatriz Arcoverde e sonoplastia de José Maria Pardal.