“Acho que o problema do índio não é só da Funai e não é só do governo. O problema do índio é de todos os brancos”. Nascente é um trecho da missiva ocasião escrita por um dos principais líderes indígenas do país, Megaron Txucarramãe, do povo Kayapó, para o Brasil, em 1º de novembro de 1980. Divulgada em plena ditadura militar, a missiva traz questões discutidas entre povos indígenas e a responsabilização dos órgãos de governo e da sociedade.
Outro trecho da missiva traz assuntos que ainda hoje são críticos no Brasil, construções que impactam territórios indígenas e ameaças à saúde desses povos: “em 1973 para 1974, pessoal pegou sarampo na estrada e levou para Jarina. Sarampo matou muita gente. Para branco a estrada é muito boa, mas para nós não foi muito boa, porque pela estrada chega doença para índio”, diz o documento.
Esta é uma das mais de 1,1 milénio cartas analisadas na tese Retomar o Brasil: um estudo das cartas escritas pelos povos indígenas nos últimos 50 anos, de Rafael Xucuru-Kariri (foto em destaque), doutor em ciências sociais pela Universidade Federalista da Bahia (UFBA). A tese é um recorte do projeto As Cartas dos Povos Indígenas ao Brasil, coordenado pela professora da UFBA Suzane Lima Costa, que pode ser acessado na internet e reúne as cartas escritas por esses povos a presidentes, a autoridades, a organizações e lideranças nacionais e internacionais, desde o século 17.
No dia 12 de dezembro, Xucuru-Kariri venceu o prêmio Lélia Gonzales, consagrando-se uma vez que o primeiro indígena a receber uma das principais condecorações do Prêmio Capes de Tese 2024, que reconhece os melhores trabalhos de desfecho de doutorado defendidos no Brasil. Ao todo são três as premiações máximas. O prêmio que recebeu da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), autonomia vinculada ao Ministério da Ensino (MEC), é referente ao escola de humanidades.
Na tese, Xucuru-Kariri mapeia as cartas escritas entre 1972 e 2022 e analisa quem escreve, quem são os destinatários, os assuntos e o contexto de escrita das correspondências públicas indígenas. Ao longo do tempo escolhido para a estudo, ele observa também mudanças tecnológicas, com as cartas passando a ser digitalizadas a partir dos anos 2000. Com o progresso da tecnologia e também com o aumento dos índices de alfabetização, mais cartas foram escritas.
Em relação aos assuntos abordados, segundo a pesquisa, a maior secção das cartas do período tratam de terreno (479), seguido por violência (211), saúde (198), instrução (134) e meio envolvente (83).
Para Xucuru-Kariri, as cartas buscam trazer para o debate público assuntos que muitas vezes não têm espaço e servem também para expor as visões de mundo, os pensamentos e sentimentos desses povos. O estudo que fez derruba ainda um dos mitos que se tem no Brasil, de negócio com o pesquisador, que é de que os indígenas não tem uma produção escrita.
“É uma história que a gente acredita que ainda precisa ser contada, porque em universal não se ouve a voz indígena, não se ouve que pessoas e povos passaram para derrubar inclusive muitos dos mitos que o Brasil acredita sobre povos indígenas. Um deles é que não escrevemos, que nós não escreveríamos. E a tese demonstra justamente isso, que há, na verdade, uma escrita, uma escrita muito profunda, uma escrita de grande quantidade de povos indígenas e há refinadas formas também de interpretar o Brasil, uma vez que intelectuais, uma vez que filósofos, uma vez que pensadores sobre o país. Logo, boa secção dessas cartas estão falando um pouco dessa tradução sobre ser indígena, sobre viver e morrer sendo indígena no Brasil”, diz Xucuru-Kariri.
Escrevendo cartas
O pesquisador conta que as cartas sempre fizeram e ainda fazem secção da própria história. Ele integra a primeira geração de indígenas alfabetizados em tamanho no Brasil, o que ocorreu a partir da Constituição de 1988. Os pais dele eram funcionários da Instauração Pátrio dos Povos Indígenas (Funai) e a lar da família era frequentada por diversas lideranças indígenas. Por já saber ler e redigir, Xucuru-Kariri foi, ele mesmo, redator de muitas cartas.
“Nossa lar era sempre rodeada por muitas lideranças, muitas pessoas discutindo, principalmente ali no extremo sul da Bahia, onde a gente foi criado. A gente escutava e debatia muito com Pataxós, Pataxós Hã-Hã-Hãe e Tupinambás. Eles estavam sempre lá em lar discutindo, falando sobre o movimento indígena. Porquê eu já tinha pretérito por esse processo de letramento e sabia datilografar – na era, nem eram computadores, eram aquelas máquinas de datilografar -, eu redigia muitas dessas cartas, com demandas sobre postos de saúde, escolas e demandas variadas nas aldeias”, diz.
Mesmo conhecendo de perto os documentos e os processos de escrita, Xucuru-Kariri nunca tinha pensado em estudar essas cartas até saber o projeto de Suzane Lima Costa, do qual hoje faz secção. “Eram reflexões óbvias, mas que ninguém tinha. Que esses povos, essas pessoas, escreviam e escrevem muitas cartas públicas”, diz.
“Você tem todas essas cartas do pretérito, mostrando uma vez que a história indígena e, portanto, a história brasileira, é muito rica e dissemelhante daquilo que, infelizmente, a gente aprendeu nos livros didáticos e uma vez que a gente acaba divulgando na sociedade brasileira. Você também tem um lado presente, uma vez que na ditadura, que eles escreviam muito analisando a sua situação política. E também na redemocratização, uma vez que os povos participaram da Constituinte, uma vez que eles demarcaram um espaço ali no debate público”, acrescenta.
Problemas persistem
As cartas mostram também que os problemas persistem ao longo dos anos. Se em 1980 Megaron falou sobre os riscos do sarampo para os indígenas, em 2021, a Pronunciação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lutou para que a vacina contra a covid-19 chegue aos povos indígenas.
“A luta da Apib junto ao Supremo Tribunal Federalista, através da ADPF 709, e a mobilização dos povos indígenas no enfrentamento da pandemia garantiram que os povos entrassem no grupo prioritário da vacinação nesse momento, pois a vulnerabilidade dos povos à covid-19 é muito maior do que o restante da população, podendo chegar a sete vezes em certas faixas etárias”, diz trecho da missiva analisado na tese.
A luta pela terreno e a violência também perpassam os anos analisados na tese. Em 12 de agosto de 1975, a líder indígena, educadora, contadora de histórias, escritora e artesã Andila Kaingang escreveu ao portanto presidente, Ernesto Geisel:
“Isto, senhor presidente, para o povo branco e urbano, uma vez que se julgam, talvez possa parecer romantismo ou coisa que equivalha, mas para o meu povo não, para ele é estilo de vida, é razão de viver e, consequentemente, motivo bastante para morrer. A invasão de nossas terras para o vosso povo tem significa simplesmente um problema jurídico, ou uma vez que quer queiram chamá-lo, para o meu povo não, são problemas que nós caigangues sentimos uma vez que feridas que nos atormentam no mais cume dos sentimentos, fazendo-nos diminuídos, oprimidos e transformando as nossas noites e vigílias na esperança de ver ao amanhecer nossas terras desocupadas pelos brancos e, no entardecer, mais um dia de desilusão, iniciando-se uma novidade esperança”, diz trecho da missiva.
A terreno foi e é espaço de disputa vernáculo, muitas vezes marcada por violência extrema. Em 2004, mulheres indígenas que sobreviveram a ataque de homens armados aos povos da Terreno Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima relatam o que ocorreu em missiva ocasião. “Foi às 6h da manhã e eu estava deitada ainda. Aí, o meu cunhado (que foi baleado) chegou correndo […] Eu sai, e quando olhei […] o incêndio já estava queimando as casas. Eu peguei o meu terçado e cerquei eles. Falei: podem transpor daqui! Se não, eu toro vocês no meio com o meu terçado! Eles pararam e disseram: que mulher buchudinha braba! Ele (um dos agressores) disse que ia me matar. Ele disse: vou atirar em tu, com o teu rebento na ventre! Eu disse: pode me matar, que eu não tenho pavor de morrer! […] Eles tocaram incêndio”, diz trecho da missiva.
Mais recentemente, em 2021, as disputa seguem com a discussão sobre o marco temporal, que foi o foco de missiva do povo terena. Julgada pelo Supremo Tribunal Federalista (STF), a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas, defendida por proprietários de terras, estipulava que os indígenas somente teriam recta às terras que estavam em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federalista, ou que estavam em disputa judicial na era.
“Impor a tese do marco temporal a nós, povos indígenas, zero mais é do que simplesmente querer legalizar o ilícito ou ilícito, quer expor, legalizar a titulação fraudulenta das propriedades estabelecidas em terras das quais comunidades inteiras foram expulsas de maneira violenta, de onde foram vítimas de remoção forçada ou espoliação. Tal imposição está diretamente ligada à teoria de genocídio ou etnocídio porque a terreno é o suporte físico para o usufruto e a existência física e cultural dos povos indígenas, segundo seus usos costumes e tradições, conforme estabelece a própria Missiva Magna em seu item 231”, diz o trecho evidenciado na tese.
Recriando espaços públicos
Para Xucuru-Kariri, as cartas são importantes para a informação dos povos com o restante do país. “É um tipo de estratégia que os povos têm criado com as cartas para reconfigurar, recriar um espaço público. Essa eu acho que é uma das principais respostas que a gente tem observado. Para fora, elas criam uma sonância na sociedade brasileira, para discutir mais, para fazer mais ações nas aldeias que impactem positivamente os povos indígenas, mas para dentro também. Esses povos, a partir dessas cartas, se reorganizam”.
Atualmente, Xucuru-Kariri é servidor público que atua na UFBA. Participou da geração recente da Licenciatura Intercultural Indígena da universidade. Posteriormente ter sido responsável pela escrita de cartas e posteriormente ter feito um doutorado sobre elas, ele diz que, uma vez que servidor, tornou-se também um dos destinatários desses documentos. “Hoje em dia, eu posso expor que, sem saber, eu passei uma vida entre cartas. Continuo vivendo minha vida entre essas cartas”, diz.