Uma caminhonete amarela de entrega do jornal Folha de S. Paulo com um suposto defeito mecânico estava paragem havia uma semana em frente ao prédio do estudante de geologia e militante Adriano Diogo, de 23 anos, na Mooca, zona leste de São Paulo.
Naquele 17 de março de 1973, militares saíram do carruagem de distribuição do periódico e subiram ao apartamento do rapaz. “Eles quase me mataram”, recorda o agora ex-deputado estadual, em entrevista à Dependência Brasil.
Diogo foi encapuzado, agredido, torturado e levado para o Multíplice do Núcleo de Operações de Resguardo Interna (DOI-Codi), na Vila Mariana, onde funcionava a Operação Bandeirante (Oban), um espaço de tortura e assassinatos durante a ditadura militar no Brasil.
A utilização do veículo de um dos principais jornais do país para uma ação de vexação não foi caso vasqueiro durante o período ditatorial e ilustra uma das faces da colaboração direta da Folha de S. Paulo, revela pesquisa realizada por seis professores (de diferentes instituições) que se transformou no livro A serviço da repressão.
A obra será lançada nesta quinta (27), às 18h, na livraria Sentença Popular, em São Paulo. Uma das autoras do trabalho, a professora de jornalismo Flora Daemon explica que o estudo durou dois anos e serviu de base para que o Ministério Público Federalista abrisse um interrogatório contra o grupo Folha.
A investigação, segundo o MPF, corre em sigilo de justiça e, por isso, não comenta o curso dos trabalhos. A professora foi uma das responsáveis pelas mais de 40 entrevistas para a pesquisa.
Investigação
Os recursos para o levantamento das provas surgiram depois que a Volkswagen, que também colaborou com a repressão, assinou um termo de ajuste de conduta (no valor de R$ 4,5 milhões).
De tratado com a pesquisadora, o Ministério Público Federalista definiu que uma segmento desses recursos deveria ser destinada para investigações de outras empresas com indícios de terem aderido aos atos da ditadura (a partir do relatório final da Percentagem Pátrio da Verdade). O MPF escolheu a Universidade Federalista de São Paulo (Unifesp) para a gestão desse processo.
A equipe incumbida de investigar os atos da Folha, uma das 10 instituições investigadas, inclui, além da professora Flora, os docentes Lucas Pedretti, Ana Paula Ribeiro, Amanda Romanelli, André Bonsanto e Joëlle Rouchou.
“A gente buscou provas, indícios e materialidades para qualificar esse material para apresentar ao Ministério Público”, explica Flora Daemon, que é professora da Universidade Federalista Rústico do Rio de Janeiro e da pós-graduação da Universidade Federalista Fluminense.
Pela memória
Entidades ligadas ao jornalismo apoiaram a realização da investigação ao entender que a pesquisa dos professores é fundamental para a preservação da memória.
“Acho importante determinar e reavaliar o papel da prensa, tanto a atuação dos proprietários porquê dos profissionais. Nosso papel está na resguardo dos jornalistas”, afirmou a presidente da Federação Pátrio dos Jornalistas (Fenaj), Samira Castro.
Diretor da Associação Brasileira de Prelo (ABI), Moacyr Oliveira Rebento afirma que é importante estabelecer a verdade para que as novas gerações fiquem sabendo de tudo que aconteceu e que isso não se repita. “Houve uma participação direta da Folha, não só no escora político à ditadura, através dos seus jornais, mas também no empréstimo de carros”.
Entrevistas
O grupo de pesquisadores sabia que, além dos documentos, o valor dos testemunhos seria meão para a coleta de provas. “A gente entrevistou 44 pessoas diretamente ligadas à Folha de S. Paulo ou à repressão. E todas elas apontavam para o vestuário de que o jornal colaborou com a ditadura”, afirmou.
Entre as entrevistas, há testemunhos de pessoas que foram presas em emboscadas a partir da utilização de carros do grupo, porquê o que ocorreu com Adriano Diogo. “Temos pessoas que testemunharam essas cenas, além de agentes do próprio DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Núcleo de Operações de Resguardo Interna) que explicaram porquê era feito o empréstimo desses carros da Folha à repressão”.
Os carros serviram de dissimulação para ações dos militares em vigilância, campanas, sequestros, assassinatos e desaparecimentos forçados de militantes, apontam os pesquisadores no livro. “Cruzamos as informações de indivíduos de origens diferentes para assim poder sustentar alguma coisa contundente”, diz Flora Daemon.
“Uma vez que uma delegacia”
A pesquisadora contextualiza que os jornais do Grupo Folha atuaram de maneiras distintas ao longo do período ditatorial. “Conhecíamos também o papel que o jornal Folha da Tarde, um dos órgãos do grupo, com manchetes grotescas e violentas. A Folha da Tarde ficou muito associada ao papel mais sujo, editorial, por segmento do grupo”.
Adriano Diogo, entrevistado para o livro, relembrou à Dependência Brasil, por exemplo, que a redação da Folha da Tarde funcionava porquê uma delegacia de polícia, tal era a mistura de papéis entre o jornalismo e a repressão. Editorialmente, a Folha de S. Paulo também chamava de terroristas as pessoas que defendiam a democracia.
“Carros no estacionamento”
Outra testemunha desse envolvimento é o jornalista Ivan Seixas, recluso e torturado em 1971, com exclusivamente 16 anos de idade, junto com o pai, o operário Joaquim (que foi assassinado nas instalações do DOI-Codi, em São Paulo). “Quando nós fomos capturados, eu vi carros dos jornais [do grupo Folha] dentro do estacionamento do DOI-Codi”, disse em entrevista à Dependência Brasil.
Em uma saída temporária da prisão, o logo jovem viu na envoltório do jornal Folha da Tarde que o pai dele tinha morrido. Mas Joaquim ainda estava vivo, o que demonstrava que o órgão estava a serviço das desinformações da ditadura.
Revólver na mesa
Outra desfecho da pesquisa é que diversos policiais trabalhavam dentro do Grupo Folha. “Atuavam até porquê jornalistas, trabalhando inclusive com armas em cima da mesa. Conseguimos mapear a presença de dois delegados do supino escalão do DOPS contratados com vínculo direto ao gabinete dos dirigentes do grupo, Otávio Frias Oliveira e Carlos Caldeira Rebento”, reforça Flora Daemon.
Esses delegados eram os irmãos Robert e Edward Quass. Eles estavam dentro do Grupo Folha com toda a estrutura operacional dos carros e também monitorando e vigiando jornalistas. “Havia mais de uma dezena de policiais que trabalhavam no Grupo Folha de maneira colaborativa com a repressão”.
Isso foi testemunhado pelos jornalistas da empresa que trabalhavam na era e foram perseguidos. A logo repórter Rose Nogueira, por exemplo, que atuava na Folha da Tarde, foi presa quando estava de licença maternidade. Mesmo assim, na ficha funcional, constava que ela havia ignorado o trabalho.
Chave na ignição
O livro traz relatos testemunhas que afirmam que os motoristas da Folha recebiam a orientação, dentro da empresa, a deixar o carruagem em um determinado ponto da cidade, disponibilizar a chave na ignição, se alongar do carruagem e retornar em um horário a combinar.
A equipe de pesquisa elaborou, em parceria com a plataforma do ICL, uma série documental de quatro episódios (de aproximadamente 35 minutos cada um), com toda a história. Segundo a equipe de pesquisa, os relatos não deixam margem de dúvidas sobre o que ocorreu.
Uma das entrevistas que Flora considera principalmente representativa foi com um ex-agente do DOI-Codi de São Paulo: Marival Chaves. Ele ajudou as comissões da verdade a elucidar detalhes sobre a operação dos empréstimos dos carros à repressão. “Essa entrevista foi um divisor de águas”.
Antes do golpe
O grupo de pesquisadores conseguiu provar que a Folha apoiava a ditadura até mesmo antes do golpe de 1964, com um documento de colaboração financeira em nome de Otávio Frias de Oliveira, dirigente do jornal, ao Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipês), grupo responsável pela organização e planejamento do golpe.
Outra evidência, conforme explica o pesquisador Andŕé Bonsanto, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), é que, no dia 31 de março de 1964, a edição do jornal chega à moradia das pessoas “comemorando o golpe”, antes mesmo que estivesse oficializado.
Há um suplemento chamado “64 – Brasil Continua” com mais de 30 páginas. “Foi um caderno próprio de celebração ao golpe. Faz a gente questionar, obviamente, que, naquela era, seria impossível lançar um caderno próprio exatamente no dia. Significa que eles já estavam elaborando com alguns meses de antecedência”, afirma o professor.
Outro lado
O atual secretário de redação da Folha, Vinicius Mota, encaminhou à Dependência Brasil uma apuração do veículo, publicada em 2023, sobre a colaboração com a ditadura. Nesse texto, o jornal admite que errou ao estribar o golpe contra João Goulart, mas reproduz posicionamento do logo diretor Otavio Frias Rebento (1957-2018), de que a cessão de veículos ocorreu de forma episódica e sem conhecimento ou autorização da direção.
O veículo admitiu um incidente, ocorrido antes do golpe de 1964, em que o repórter Antônio Aggio Jr. utilizou um carruagem do Grupo Folha para camuflar a ingressão de conspiradores em um quartel e também o telex da sede e da sucursal do Rio para passar uma mensagem cifrada. “A direção do jornal não foi informada na ocasião”, garantiu a publicação. Essa situação teria forçado Frias, segundo a Folha.
A reverência do incidente de perseguição à jornalista Rose Nogueira, a Folha entende que o incidente lança incerteza sobre eventual participação na repressão.
“Não é provável declarar que, nesse caso, o Grupo Folha tivesse agido de tratado com os interesses da repressão. Não existem indícios suficientes de que isso tenha de vestuário ocorrido. O que há, exclusivamente, é uma suspeita levantada pela vítima, com base em coincidência de datas. Por outro lado, não existe explicação para a versão que consta de sua ficha profissional. Todo o grupo da ALN [Ação Libertadora Nacional] que trabalhava na FT acabou recluso”.
A reverência da presença de militares na redação do grupo, a empresa reforçou o posicionamento de Frias que alegou possuir dificuldades financeiras no grupo, o que teria impedido uma reação contra o governo. “Nessas condições, não haveria porquê resistir a pressões. Enfrentar o governo seria fanfarronada. Eu nunca fui varão de bravatas”, afirmou Frias em entrevista.
Confira o posicionamento da Folha de S Paulo sobre o tema