Três militares do Tropa armados chegaram à vivenda da professora de história Eulália Maria Lobo, no Rio de Janeiro, em uma noite de junho de 1969 e pediram para falar com ela. Eles não a conheciam e perguntaram se ela era a docente procurada.
“Não digo quem sou enquanto vocês não me disserem quem são. Vocês estão uniformizados, mas podem ter assaltado um quartel e roubado as fardas. Quero saber quem são vocês”. O relato foi publicado na Revista Estudos Históricos em 1992 e costuma ser relembrado por quem conviveu com a professora. Eulália nasceu há exatos 100 anos no Rio de Janeiro e morreu em 2011.
Entre as marcas de sua pesquisa, segundo estudiosos, uma visão para além dos números da história econômica. Ela era atenta às transformações pelas quais as pessoas passavam. Entre artigos, conferência e livros, a produção dela ultrapassa 150 textos e apresentações.
E essa particularidade dela teria sido forjada principalmente posteriormente a ditadura militar. Naquele incidente de 1969, segundo o relato de Eulália, havia um temor que ela falasse sobre a situação do Brasil com o governador de Novidade Iorque Nelson Rockefeller, que representava o presidente dos EUA, Richard Nixon, em visitante ao Brasil. Eulália indicou que ficou presa uma semana.
E saiu porque o marido dela, Bruno Lobo, conseguiu contato com um cunhado almirante da Marinha. Antes de ser liberada, ainda se posicionou: “O Tropa que combateu a caça aos escravos, que proclamou a República, vem agora prender os cidadãos que não estão armados. O Tropa, que tem tantas tradições gloriosas, está reduzido a isso?”, reclamou Eulália.
Revoluções
O professor de história Luiz Fernando Saraiva, da Universidade Federalista Fluminense, defende que Eulália Lobo fazia segmento de uma geração que estava revolucionando a produção historiográfica brasileira, com novas questões e temas sociais. “Isso incomodava. Existia uma posição política progressista dessas pessoas, mas também existia uma renovação dos estudos históricos que muitos professores antigos se sentiam ameaçados. Era uma professora progressista, na medida do verosímil, que apoiava pautas que a gente poderia expressar mais humanistas, mesmo não tendo uma militância contra o regime”, afirma.
Ela teria defendido a tese de doutorado entre 1946 e 1953 e há quem defenda que ela foi a primeira mulher doutora em história no país. Há divergências quanto a isso porque a professora Alice Canabrava relatou que foi doutora em 1942, conforme observa o professor Luiz Saraiva. Seja uma vez que for, segundo pesquisadores da obra dela, os estudos de Eulália são marcados por pioneirismo e olhares diferenciados.
Inclusive, nesta quarta, a Universidade Federalista Fluminense realiza um evento para debater o legado da professora. Na oportunidade, vai ser lançada a segunda edição do livro “História do Rio de Janeiro”, em formato eletrônico e gratuito, publicado pela primeira vez no ano de 1978, que teve originalmente mais de milénio páginas. O evento pode ser escoltado pelo Youtube.
Olhar econômico e social para o Rio
A pesquisa realizada por Eulália foi verosímil por uma bolsa do Instituto Brasílio de Mercados de Capitais (Ibmec). “Foi uma das primeiras obras com uso da informática e tem teor grande de anexos estatísticos, salários, preços, juros e indústrias no Brasil inteiro. Até hoje, é uma obra utilizada em larga graduação pelos historiadores”, diz Saraiva.
Para a professora Fania Fridman, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federalista do Rio de Janeiro (UFRJ), a pesquisa de Eulália Lobo é inspiração para ela desde que era estagiária do Ibmec. “Eulália foi uma desbravadora. Ela já vinha estudando o movimento operário. No livro sobre a história do Rio de Janeiro, ela diadema a trajetória dela. É um clássico”.
Isso porque, no entender da professora da UFRJ, Eulália faz uma estudo do processo econômico e social da cidade do Rio de Janeiro com detalhismo e procura olhar para o operariado brasílico. “Ela vai ver o quanto eles ganhavam, o nível de vida. Ela vai expressar quanto que esses operários pagavam de aluguel”.
Macróbio aluno da professora Eulália Lobo, o professor Carlos Gabriel Guimarães, também da UFF, considera que ela foi uma das principais historiadoras do país. “As pesquisas que ela produziu foram fundamentais para a historiografia brasileira. Não é só a história econômica, mas também a do trabalho que ela deixou de legado para nós”.
Ele também considera que o grande legado dela está na obra sobre a história do Rio de Janeiro. “É bom lembrar que a cidade do Rio de Janeiro foi o primeiro núcleo industrial do Brasil. Isso é um pouco que as pessoas esquecem”. O professor Carlos Gabriel aponta que, em outra obra, sobre operários do Rio de Janeiro, é marca de sua trajetória. “Ela gostava de entrar nos arquivos e casar pessoas. A história quantitativa pode permanecer reduzida a números. Ela foi além”.
Um google
Os pesquisadores ouvidos pela Escritório Brasil entendem que o país produziu uma geração de historiadores entre os anos de 1940 e 1950 que revolucionaram o estudo da história do Brasil varreram arquivos, levantaram dados, em uma estação sem televisão ou internet. “O livro dela era uma espécie de Google sobre o Rio de Janeiro”, diz Saraiva.
No caso de Eulália, ela apresenta estudos sobre história comparativa da governo portuguesa e espanhola e, depois, por força da cassação dela enquanto professora da Faculdade Pátrio de Filosofia, na Universidade Federalista do Rio de Janeiro, ela foi para os Estados Unidos. “É uma vez que se fosse uma segunda vida dela”, avalia o professor Luiz Fernando Saraiva .
Eulália passou a olhar, segundo os pesquisadores, para a história econômica com maior viés social. Para o professor Carlos Gabriel, Eulália se preocupou com o salário de trabalhadores livres. Ela tinha um olhar novo sobre essa economia. “E no final da vida dela, ela estuda bastante a questão da transmigração portuguesa e principalmente dos operários no Rio de Janeiro”.
Os professores entendem que o pioneirismo dela uma vez que mulher encorajou outras pesquisadoras a seguirem caminhos na pesquisa. “Ela teve um papel muito importante para as mulheres na história. Por isso que eu acho precisa ser lembrada. Para mim, ela foi a primeira doutora em história no Brasil. E isso é muito importante”, defende Guimarães.
A professora Ismênia Martins, amiga de uma vida inteira de Eulália e docente emérita da Universidade Federalista Fluminense, não pôde atender à Escritório Brasil. Mas, em cláusula para a mais recente edição da obra histórica sobre o Rio de Janeiro, lembrou que Eulália andava sem temor pela cidade que pesquisou e viveu.
Ismênia recorreu a uma citação da amiga: “Eu não sinto temor de transpor no Rio de Janeiro, saio tarde, frequentemente vou sozinha a lugares que as pessoas acham perigosos”. Ela andava pela cidade que conhecia pelo que havia escrito e estava na palma das mãos.