Atribuída ao pianista e regente Hans von Bülow, a denominação de Bach, Beethoven e Brahms uma vez que os “Três Grandes Bs da música clássica” vai além de uma casualidade alfabética a amarrar autores de épocas distintas. De traje, os compositores —um barroco, um clássico e um romântico— não poderiam ter se sabido.
Uma visão filosófica da história da arte, tal uma vez que a que se desenvolveu fortemente ao longo do século 19, e que deixa marcas até hoje, estabelece relações profundas entre artistas, obras e períodos e, de traje, essa parece ser a proposta do recital da pianista francesa Hélène Grimaud no novo Teatro Cultura Artística, esta semana, em São Paulo.
Presença marcante no meio pianístico mundial há mais de 30 anos, artista exclusiva do selo Deutsche Grammophon, parceira em concertos e gravações de regentes uma vez que Pierre Boulez, Claudio Abbado, Daniel Barenboim e Andris Nelsons, ativista da preservação bicho e escritora, Grimaud tem um largo histórico com o repertório apresentado em São Paulo.
A “Sonata” op. 109 de Beethoven já havia sido gravada por ela em 1999; as “Fantasias” op.116 e os “Intermezzi” op.117 de Brahms, registrados já em 1996, têm sido revisitados em seus trabalhos mais recentes, uma vez que num álbum lançado neste ano; e sua conexão discográfica com a versão de Busoni para a “Chaconne” BWV 1004″ de Bach remonta a 2008.
Arte, religião, filosofia: seria o ternário hegeliano aplicável aos “três Bs”? No programa de Grimaud, Brahms —estrategicamente posto depois de Beethoven e antes de Bach, imediatamente antes e depois do pausa— é o puro artesanato, a metafísica com corpo, a espiritualidade manifesta.
Na visão de Grimaud seus “intermezzi” intermedeiam o rigor conceitual de Beethoven e a pura espiritualidade bachiana.
Sempre é reptador caracterizar o toque sonoro de um músico, sua musicalidade intrínseca. Grimaud tem a arte da arte uma vez que traço: não é místico uma vez que András Schiff nem filosófica uma vez que Glenn Gould. Sua notícia é direta, visceral, quase imediata.
O jogo de tonalidades das sete “Fantasias” op.116 de Brahms é organizado em um esquema 3 + 3 + 1: agrupa ré menor, lá menor, sol menor; daí mi maior, mi menor, mi maior; e, enfim, ré menor.
Não à toa, ela não deixou espaço entre Brahms e Bach, atacando sem pausa —no mesmo ré menor— o tema da “Chaconne”. Original para violino solo, quase sem caber em si, a obra-oração faz variações infinitas sobre uma simples risco de ordinário, sempre a mesma, mas sempre outra.
Tosses e celulares também tiveram os seus “solos”, mas a concentração de Grimaud é plena. Em sua versão, o intentona de Busoni às vezes evoca um grande órgão, o instrumento que faria com que a obra de Bach assumisse de uma vez por todas o caráter sacro.
Eis que, na volta para lar, posteriormente Brahms e Bach, são os dilemas de Beethoven que voltam a nos invocar. Em algumas de suas sonatas, uma vez que a op.129, a antepenúltima que escreveu —tocada por Grimaud na fenda do recital—, o compositor parece negar dos movimentos extremos (primeiro e final, no formato que a forma modelar da sonata preconiza) para exercitar os interiores, os movimentos intermediários, alçados a protagonistas.
Tudo começa (primeiro movimento) com o que parece ser uma longa improvisação escrita —sabe-se que Beethoven era improvisador insuperável; daí vem (segundo movimento) o “Prestissimo”, com jeito de scherzo; enfim, o “Vagabundo com variações”, o movimento lento, verdadeira obra dentro da obra.
Curiosamente, um tema com variações muitas vezes pode também remeter a improvisações. Mas não em Beethoven: o trabalho construtor paciente, a elaboração conceitual dos temas, passo a passo, sem deixar zero de fora, leva a um desdobrar da estrutura sobre si própria, em que as oposições estão conciliadas sem recair no dogmatismo.
Poder ouvir obras e artistas uma vez que esses na acústica do novo Teatro Cultura Artística é um dos principais acontecimentos do mundo músico brasílico —talvez o mais importante da atual dez até cá.
O mesmo som compacto e pleno pode ser estimado em diferentes pontos da sala, que, por sua dimensão, compara-se —sem nenhuma perda e com mais isolamento do mundo extrínseco— à icônica Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro.