Uma poça de sangue banha a lajedo em frente à porta surrada de um estabelecimento qualquer na cidade de Iowa, nos Estados Unidos. Os passantes estranham, mas desviam e seguem até que aquilo não lhes diga mais zero.
É com essa obra da artista Ana Mendieta que começa a primeira temporada do podcast “Death of an Artist”. A escolha não é casual. A obra guarda semelhança sinistra com a morte da própria artista cubana, radicada nos Estados Unidos. Mendieta foi encontrada morta devido à queda do apartamento onde morava em Novidade York com o também artista Carl Andre.
As circunstâncias controversas deste evento são o eixo da temporada incipiente, de 2022. Agora, em 2024, a série retorna e se amplia, abordando a trajetória da artista Lee Krasner e sua relação com Friedrich Pollock, figura médio do expressionismo abstrato.
Com riqueza de fontes do meio das artes, entre curadores e historiadoras, o podcast recupera as histórias destas artistas e mostra porquê seu clarão próprio foi em segmento ofuscado por homens —companheiros de ambas, inclusive— que se tornaram nomes canônicos das artes.
Esta premissa pode toar um tanto óbvia e, talvez, pouco interessante ao ouvinte saturado por histórias do tipo. Mas “Death of an Artist” fica longe de uma narrativa previsível. A série é convidativa até para os leigos —mas dispostos— a entrar no universo das artes, seus jogos de poder e interesse, e porquê estes interferem no julgamento de artistas, seja estético ou jurídico.
Isso fica evidente na história de Ana Mendieta, artista que teve uma produção potente abordando temas porquê corpo, feminilidade, violência e a experiência do desterro. Enquanto buscava seu lugar no mundo das artes, Carl Andre já havia guardado o seu, porquê um dos fundadores do movimento minimalista.
Visto no meio artístico porquê uma figura revolucionária e questionadora de convenções, alguém de quem Ana teria muito a lucrar ao se aproximar, o papel de Andre na morte de Mendieta tornou-se um tabu eterno no mundo das artes, mesmo depois sua remissão em julgamento.
Inspirada pelo movimento MeToo, a apresentadora Helen Molesworth decide retomar a questão – se não para deslindar um pouco novo sobre o papel de Andre, ao menos para descrever o que o silêncio sobre a morte de Mendieta expressa sobre o mundo das artes.
Ela mesmo uma curadora com trânsito neste meio, Molesworth descobre que até hoje há quem prefira não se manifestar a saudação daquele evento —o que, porquê ela diz, beneficiou sobretudo Andre, que morreu em janeiro deste ano.
Nesta investigação, Molesworth revela porquê esta figura do artista genial serve porquê proteção institucional e pessoal. Falar sobre o caso é um risco que aqueles próximos demais ao estatuário preferem não passar: de perderem relações e prejudicarem negócios; de destruírem a imagem de um ícone e um conjunto de ideias por ele representado. No mercado das artes, tudo isso tem seu valor.
É provocativa também a associação feita por ela entre museus e tribunais: ambas são instituições tomadoras de decisão e validação de um pouco, lugares que dão legitimidade ou não a uma história.
E a versão de Andre venceu: no tribunal não se encontraram evidências definitivas que o atestassem porquê matador, embora, porquê o podcast mostra, as várias versões conflitantes que ele mesmo contou permitissem suspeitas razoáveis sobre ele e a investigação. No mundo artístico, sua curso seguiu sem maiores perturbações.
Mas Mendieta e sua produção também foram julgadas: sua personalidade intempestiva, suas performances tematizando a morte e o corpo feminino e mesmo seu interesse pela santeria —religião de matriz africana presente em Cuba e tematizada em seu trabalho— tudo isso serviu para cevar a argumentação de que ela teria se matado.
Só que Molesworth consegue ir além da morte da artista, recuperando a relevância crescente da cubana hoje. Esse é um duelo pessoal que o podcast enfrenta com sucesso —descrever, ou melhor, descrever sobre produções de artes visuais.
Em ambas as temporadas isso surge de forma muito integrada à narração e às percepções das apresentadoras, que ao relataram porquê tais produções as afetam, nos fazem um invitação sensível a imaginar —e mesmo a procurarmos depois— porquê essas obras são. Talvez poderíamos ter tido mais momentos destes.
É notável na segunda temporada o momento em que Lee Krasner visitante a galeria que mais tarde se tornaria o Museu de Arte Moderna de Novidade York. Aluna de uma prestigiosa, mas conservadora escola de arte na cidade, Krasner é impactada pelo que descobre ali. São obras porquê a de Picasso, Magritte e outros expoentes da arte moderna europeia, que se afastam cada vez mais do papel figurativo da arte. Essa invenção abriria os caminhos da produção mais abstrata de sua obra multifacetada.
Conduzida por Katy Hessel, que mantém a narrativa envolvente de Molesworth, a segunda temporada, aliás, expande para outros sentidos a ideia-guia do podcast. Da morte de qual artista se está falando —ou ainda, de que morte?
Pode ser a “morte” parcial da curso artística de Krasner enquanto Pollock era vivo, já que ela serviu de verdadeiro sustento à curso dele.
Mas pode ser também a morte da imagem mítica de Pollock porquê o maior artista plástico americano do século pretérito —ou ao menos da aura de gênio individual.
Uma vez que conta o podcast, além de inspirar Pollock porquê artista, Krasner foi quem teve faro e atitude para inseri-lo no mercado de arte, trazendo um crítico de peso que promovesse suas obras, negociando-as em galerias —postura empreendedora impensável para mulheres no mundo das artes no meio do século pretérito.
É com o acidente de coche em que um embriagado Pollock morre que a segunda temporada abre. O evento, e porquê foi dirigido com maestria e objetividade por Krasner, é simbólico da relação entre ambos. Daí seguimos para uma cronologia da vida de Krasner até retornar à morte de Pollock e depois, quando a curso dela mesmo ascendeu, agora ocupando com suas telas os espaços que antes cedeu ao companheiro.
Cá a sonorização soa melhor resolvida também quanto ao uso de trilhas, que não produzem um excesso de quebras e microcenas. Já a opção por efeitos sonoros literais soa dispensável.
Uma vez que uma boa visitante a uma galeria ou museu, saímos de “Death of an Artist” com o libido de voltar. O que se fez até cá mostra que a série ainda pode ter muito a descrever.