Poeira Pura Faz Da Roda De Samba Uma Festa

Poeira Pura faz da roda de samba uma festa – 20/10/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Nas imagens gravadas com filtro quente, transborda na tela o calor do envolvente regado a álcool, celebração, fumaça de cigarros, música e sedução. Gente preta, gente de tons de pele que Gilberto Gil já definiu uma vez que “povo chocolate e mel”, tênis Nike, Tranca Rua, ósculo gay, ósculo triplo, corpos sem camisa, decotes, repique de mão, guitarra, dispositivos eletrônicos, Zé Pelintra, samba no pé.

O refrão sustenta: “Meu samba é a tratamento em forma de suor e febre/ Putaria, rito, o velho e o novo”. “Suor e Febre” é o primeiro clipe do Poeira Pura, marcando o início do trabalho autoral da roda de samba acústica que se popularizou no Rio de Janeiro a partir de 2021, e que já realizou edições em São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Salvador.

“Poeira Pura, o nome, já é uma provocação”, diz Mateus Professor, pai da roda ao lado de Rogério Família. “Porque a poeira é feita de impureza. Poeira pura, na verdade, é pura impureza. O que a gente faz é assumir essa poeira da rua, do movimento. A poeira que tá no ar”.

“Suor e Febre” tem, portanto, um valor de manifesto em sua poética de encruzilhada, com versos que cruzam veneno e remédio, putaria e rito, velho e novo. É a tentativa de levar para a lógica de orquestra, de palco, o pensamento que vem guiando a roda desde seu promanação em 2019. Um pensamento radicalmente inclusivo no olhar sobre a sociedade, e sobre o samba —mais do que isso, a partir do samba.

“De vez em quando, a galera do envolvente do samba tradicional vem falar da nossa roda: ‘pô, os caras vão permanecer se beijando na boca?’”, conta Família. “Eles vêm expor que é ‘samba de veado’. Eu respondo que é samba de veado, de macumbeiro, de puta, de polícia, de desempregado. É samba de gente”.

As redes sociais do Poeira Pura refletem e potencializam essa postura, com imagens do público que retratam a formosura negra, carregada na sensualidade. “‘Desde o início a gente queria investir numa estética mais arrojada. Mais urbana, menos saudosista”, explica Professor.

“A teoria é discursar com uma galera novidade que trafega pelo funk, pelo hip-hop, pela cultura afrourbana da contemporaneidade. Uma notícia mais sensual, mais noturna, mais quente, para falar com quem curte Anitta, Ludmilla, Racionais, Oruam”, completa Família.

Mais do que simplesmente uma opção de marketing, eles buscam fundamento num olhar que entende o samba uma vez que cultura viva, pulsante. Isso implica na presença do sexo e da alegria — assim uma vez que da luta política. O Poeira Pura se afirma uma vez que espaço inegociável da negritude.

“Poeira Pura não é excludente nem individual, porém é da comunidade preta. Quem criou o samba foi a comunidade preta. E criou para ser um lugar de guarida”, Família aparece falando em um vídeo publicado no perfil da orquestra no Instagram.

Noutro post, é destacada uma fala de Marina Reis, produtora do Poeira Pura. “Se você, que não é pessoa negra ou originária, não consegue compreender que esse espaço não é pensado para atender prioritariamente suas demandas e desejos, um recado: não venha! O Poeira não é pra você.”

Portanto, o samba uma vez que espaço padrão da teoria de democracia racial, na qual se harmonizam livremente e sem conflito negros e brancos, pobres e ricos, partido-alto e bossa novidade, é uma teoria que o Poeira Pura procura tensionar.

“Existe a teoria de resguardar o samba num pretérito ideal que nunca existiu. A gente tem que escalar esse conflito, porque já não cabe mais esse papo de que o samba é para todo mundo, que o Brasil é uma democracia racial, que racismo não existe, que machismo ficou no pretérito. A gente vai negociando de tratado com o momento, mas esse dedo na ferida a gente nunca deixa de colocar.”

A roda —que ficou famosa na Morada do Nando e hoje acontece na Morada Savana, ambas no Meio do Rio— abre espaço para canções uma vez que “Banho de Folhas”, da Luedji Luna, e “Baby 95”, da Liniker, mas elas são exceções. O repertório é fundamentalmente garimpado da história do samba, dos clássicos aos sucessos.

A dinâmica leva em conta a lógica orgânica da roda, sobretudo por não usar aparelhos amplificadores —o que faz com que a orquestra dependa do gogó da plateia.

Já na passagem para o estúdio, trabalho no qual o Poeira Pura dá seus primeiros passos, a teoria é explorar outras sonoridades, uma vez que mostra “Suor e Febre” —em novembro, eles apresentam o segundo single no Circo Volátil, dentro da programação da Flup, a Sarau Literária das Periferias.

Ter o samba, portanto, não uma vez que limite, e sim potência. “Talvez o que falte para o samba uma vez que movimento é se entender uma vez que árvore”, diz Professor. “Porque a raiz nutre e sustenta. Mas quem transforma o nutriente que a raiz capta em manjar para a vegetal é a fotossíntese, que é feita na folha.”

Folha

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