Vivemos uma crise civilizatória? Acho que não. A questão é mais complexa do que pensa nossa vã propaganda política. A sentença “crise civilizatória” me parece mais clara porquê marketing de ideias do que porquê noção, daí ser tão útil na polarização em ambas as margens do rio.
Um reparo epistemológico —não acho que exista nenhuma definição simples de “cultura”. A definição, nesse caso, ocuparia um livro de no mínimo 200 páginas —o livro “Grammaire de Civilisations”, do historiador Braudel, seria um bom primórdio para o leitor circunspecto.
Aliás, porquê dizia Pascal no século 17, existem palavras do uso manante que é melhor nem tentar definir, porque atrapalha a informação. “Cultura” cai porquê uma luva nesse reparo epistemológico pascaliano.
Suspeito que a sentença seja um caso pouco analisado de utopia pura e simples. Aliás, creio que a imensa maioria das pessoas que usa a termo “cultura” o faz dentro desse caso de utopia, quando não com intenção de autopropaganda política pura e simples.
“Cultura é uma sociedade que vive por valores.” Essa frase chega a ser hilária de tão absurdamente imprecisa. A termo “valores” em si não merece tanto crédito assim, para além do uso quando falamos no valor do dólar em relação ao real.
Não que não possam viver comportamentos positivamente valorizados num grupo social, mas, sim, que essa valorização “não segura muita chuva”, porquê se fala em filosofia em inglês, querendo proferir que não fica muito tempo de pé.
A veras “para além dos valores” costuma sempre vencer no dia a dia, entre pessoas e entre nações. Os advogados são a prova cabal da nulidade dos valores.
O Google diz um tanto assim —cultura é um estado avançado do desenvolvimento humano em termos estéticos, econômicos, sociais, políticos e ainda culturais.
Tomemos uma variável —escravidão, difícil de ser considerada “avançada”. Roma tinha escravos, Grécia tinha escravos, a Europa iluminista ganhava verba com escravos, inclusive alguns filósofos considerados “progressistas”.
Não vou proferir os nomes neste texto porque, antes de tudo, não levo a sério a sentença “progressista” e, depois, porque não quero investir na palhaçada do cancelamento.
Enfim, toda “cultura” até hoje tinha muitos escravos. Onde ia se encontrar força motriz antes da revolução industrial que não fosse a força motriz muscular?
A Europa começou a usar essa sentença para se diferenciar de suas colônias, estas não civilizadas. Uma sátira ao pensamento colonial derruba essa teoria em segundos. Indígenas não seriam civilizados, africanos negros tampouco.
Indígenas e africanos negros tampouco se salvariam pelo critério utópico de uma cultura —critério nascente que alimenta quem fala dessa tal crise— na medida em que alguns eram canibais e outros também praticavam escravidão em seu mercado.
A esquerda no Brasil em 2022 cravou entre a propaganda política do PT para presidente que os bolsonaristas representavam uma crise civilizatória. Falou-se tanto nisso que a sentença “crise civilizatória” ficou próxima do uso banalizado da sentença “virilidade” para além da física.
Por outro lado, a teoria face à direita de que há uma crise na “cultura ocidental” joga no pescoço da esquerda a culpa por isso, principalmente no campo do comportamento sexual, rescisão das famílias e da ensino das crianças.
Por incrível que pareça, ambos os lados fazem uso da mesma sentença vazia para se referir ao presente. Apesar de a esquerda não gostar muito dessa coisa de “cultura ocidental”, pensa no ideário iluminista e humanista europeu para proferir que bolsonaristas geram crise civilizatória. O mesmo ideário que a direita considera seu “tesouro ocidental”.
Mesmo que usemos a sentença “crise civilizatória” num sentido frouxo semanticamente, tomando por exemplo a democracia porquê núcleo positivo da cultura em crise —o que está longe de ser evidente, por exemplo, para chineses—, só daqui a uns 500 anos alguém poderá proferir um tanto sobre o período em que vivemos.
Por enquanto, melhor silenciar e cuidar do nosso jardim.
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