Por Que Direita E Esquerda Engasgam Com 'Última Ceia'

Por que direita e esquerda engasgam com ‘Última Ceia’ – 30/07/2024 – Ilustrada

Celebridades Cultura

Um grupo de homens se senta à mesa, todos do mesmo lado do traste, em perfeito estabilidade geométrico, seis à direita, seis à esquerda e o mais importante no núcleo, o varão, Jesus Cristo. Ele é o ponto de fuga da imagem, para onde todas as linhas convergem, e detrás dele os raios de sol que entram pela janela conferem à sua figura uma aura luminosa.

“A Última Ceia”, obra-prima de Leonardo Da Vinci, ele também o faceta, vem sendo lembrada porquê a vítima da vez, intuito da peneira “woke” de progressistas identitários.

Numa das muitas cenas escalafobéticas da cerimônia de início das Olimpíadas de Paris, no final da semana passada, uma mulher gorda com uma tiara reluzente na cabeça, ladeada por drag queens, algumas pessoas trans e depois um varão quase pelado pintado de azul e uma moçoilo, também parece comandar uma gigantesca mesa de jantar. Eles são 17 pessoas no totalidade, não 12, porquê os apóstolos em volta de Jesus Cristo no momento em que ele diz que naquela sala há um traidor.

É a polêmica da vez num mundo cada vez mais oferecido a fabricar contendas vazias que incendeiam o debate público e as redes sociais. Teriam os organizadores das Olimpíadas querido insultar todos os cristãos com uma sarau drag? Teriam eles parodiado a obra tão solene de Da Vinci? No tribunal do dedo, defensores e detratores da cena se engalfinham, fazendo quem não viu zero de chocante ali passar a duvidar do que viu e quem viu gritar ainda mais cume.

Os responsáveis pela performance no rio Sena já se pronunciaram dizendo que não. Não era um ataque aos cristãos nem à obra de Da Vinci. Era uma referência a Baco, o deus do vinho, e às festas pagãs do monte Olimpo.

Não importa. As intenções por trás de uma performance ou obra de arte não neutralizam as leituras que o público fará delas.

O mundo todo viu ali uma “Última Ceia” montada por corpos desviantes, que seriam expulsos da Bíblia e não apareceriam na iconografia religiosa encomendada aos renascentistas pelos ricos e poderosos da estação, caso da obra de Da Vinci, um afresco no refeitório do macróbio convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão.

O artista era ele mesmo um transviado, homossexual perseguido e recluso logo pelo transgressão de sodomia. Mas tinha contas a remunerar e topou o “job” oferecido pelo duque da cidade, Ludovico Sforza.

Seu afresco mais célebre, da mesma maneira que todas as suas pinturas, é de uma simetria sublime, a mais firme e muito construída arquitetura a encaixilhar os comensais dispostos diante de nós na mais cristalina das composições, não fosse o susto causado pelas notícias bombásticas de Jesus. Da Vinci, vejam, era apolíneo na atenção à formosura das formas; a sarau das Olimpíadas se queria o oposto, a esbórnia dionisíaca.

Que em pleno século 21 estejamos há dias discutindo uma obra de arte do século 15 é talvez o único lado bom da história —ou mau, já explico.

Da Vinci, escreveu um crítico americano no site de cultura pop Vulture, teria adorado a sarau para ele em Paris, enxurro de gente que, porquê ele, talvez não fosse bem-vindo em certos círculos de poder e prestígio. Tendo a concordar que ele curtiria o fervo, longe da sisudez do jantar no convento que, sabemos, teria um desfecho terrível.

Outros artistas, muitos outros, aliás, já fizeram releituras mais ou menos espertas, mais ou menos ousadas, escandalosas, da “Última Ceia”. O tableau vivant olímpico agora seria só mais uma, e das mais fracas, embora tenha tomado o desvelo de preencher todos os requisitos da silabário “woke” e caprichado muito na inclusão de todas as infinitas letras da {sigla} LGBTQIA+.

O fotógrafo americano, também gay, David LaChapelle talvez tenha feito a melhor delas, mantendo um Jesus de ares angelicais no núcleo de sua elaboração, mas rodeando o rebento de Deus com homens negros de roupa esportiva, um elenco que poderia ter saído de qualquer clipe de hip-hop da viradela do milênio. LaChapelle juntou corpos estigmatizados em torno da figura de Cristo para expor que, no fundo, estamos falando de paixão ao próximo, sem ressalvas.

Que estejamos discutindo essas imagens ainda, em peculiar Da Vinci, centenas de anos depois, atesta que a boa arte sobrevive a tudo, nos constrói porquê seres humanos e nos distancia da barbárie. Que estejamos ainda no matéria mostra que talvez haja um esgotamento de ideias e referências que mergulha nossa cultura contemporânea num sem-fim de remakes, tortos, anódinos, bizarros, que seja, mas que não chegam aos pés dos originais.

Os raivosos, de autoridades católicas a figuras ilustres da novíssima ultradireita global, não perderam a chance de desfilar sua intolerância diante do mundo. A turma colorida da sarau drag olímpica, por outro lado, não criou nenhuma obra de arte, só mostrou o que qualquer ser esclarecido entre nós deveria encarar porquê zero mais que a veras plural do mundo.

Folha

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