Era uma tarde de filmagens qualquer no interno de Goiás, até que as gravações de “Minha Mana e Eu” foram interrompidas abruptamente. Um grupo de moradores decidiu jogar estrume de vaca no elenco e na equipe do filme, que incluía Ingrid Guimarães e Tatá Werneck.
A ira dos invasores ilustra a animosidade que se instaurou entre a parcela da população mais conservadora e a classe artística, que se posicionou contra a ultradireita liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro nos últimos anos. O incidente foi narrado pelo produtor Marcio Fraccaroli na última edição da Expocine, feira de negócios do audiovisual que aconteceu em São Paulo, no mês pretérito.
Apesar do rebuliço, “Minha Mana e Eu” é uma comédia despretensiosa, sem sátiras políticas, na esteira de filmes que vêm se despolitizando para evitar temas sensíveis e assim driblar penitências nas salas de cinema, que ainda lutam para encher seus assentos.
Está dando visível. O filme foi o primeiro vernáculo a invadir a marca de 1 milhão de espectadores, em janeiro, quebrando um hiato que se estendia desde antes da pandemia. Na trama, as atrizes interpretam duas irmãs que vivem brigando, mas precisam cooperar para encontrar a mãe desaparecida no interno de Goiás. O longa anterior a atingir levante número foi “Minha Mãe É uma Peça 3”, com Paulo Gustavo, que mostrou um enlace gay, mas optou por pular o ósculo entre dois homens.
Ambos os filmes evidenciam que as preferências políticas têm restringido os espectadores na hora de escolher o que ver, afirma Iafa Britz, da Migdal Filmes, produtora da franquia “Minha Mãe É uma Peça”. “Com o país dividido nos últimos anos, ou você gosta de uma coisa ou não gosta. Não há chance para testar.”
Mas não é só terror de desgostar o público que tem restringido as possibilidades de produzir comédias mais ácidas, diz José Roberto Sadek, professor do curso de cinema da Instalação Armando Alvares Penteado e ex-secretário de cultura do estado de São Paulo.
Segundo Sadek, há uma tendência de governos conservadores contemplarem com editais públicos somente produções que não toquem em assuntos delicados. “Tivemos uma increpação não explícita, em que qualquer observação poderia valer uma intervalo maior do financiamento público”, diz. “Temos uma direita que não aceita sátira, discussão ou divergência, e o cinema depende muito de verba pública”, diz.
Historicamente, a comédia é o gênero que mais atrai brasileiros à sala de cinema. Basta pensar nas produtoras uma vez que a Atlântida e a Vera Cruz, que na primeira metade do século pretérito apostaram na chanchada uma vez que selo cinematográfico vernáculo para atrair público e fazer cinema a reles dispêndio.
Ainda que fossem comédias simples, os filmes da idade foram protagonizados por grandes talentos, uma vez que Grande Otelo e Oscarito, e mostraram pela primeira vez na tela grande a desigualdade do país, ainda que uma vez que tecido de fundo
Mais tarde, com o golpe militar, surgiria a pornochanchada. Produzidos principalmente no núcleo de São Paulo e por pessoas de fora da classe artística, os filmes que misturavam comédia e erotismo conseguiram passar despercebidos pela increpação, quase uma vez que um movimento de resistência à repressão.
Seguiram-se ainda grandes comédias de sucesso no período, uma vez que “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, de Bruno Barreto, “Toda Nudez Será Castigada”, de Arnaldo Jabor, ou ainda “Copacabana Mon Amour”, de Rogério Sganzerla. Na dezena seguinte, Didi, Dedé, Mussum e Zacarias lançariam mais de um filme dos Trapalhões por ano.
Percebendo o sucesso da comédia de narrativa simples, canais de televisão passaram a investir nesse tipo de humor, em peculiar a TV Orbe, que apostou na produção de longas para o cinema e também em séries para incluir em sua programação, uma vez que “A Grande Família”, “Sai de Inferior” e “Entre Tapas e Beijos”.
“Temos uma história de muita desigualdade, e as pessoas acabam usando a comédia uma vez que uma válvula de escape para mourejar com as frustrações. Rir das próprias mazelas está enraizado na nossa cultura”, diz Veronica Stumpf, diretora da Paris Entretenimento e produtora de “Minha Mana e Eu”.
Intrigas familiares ou relações amorosas complicadas são temas que fisgam o público com facilidade, finalmente, são situações com as quais a maioria das pessoas se identifica, diz a executiva.
Além da boa projeção de audiência, esse tipo de trama oferece também benefícios econômicos. Em um núcleo familiar, por exemplo, os atritos ocorrem sempre entre as mesmas pessoas e podem se repetir várias vezes, dispensando a contratação de um elenco grande.
Outra estratégia mercantil é dar protagonismo a artistas já famosos da televisão, o que minimiza riscos diante de um cenário pouco favorável para o financiamento de filmes. “É muito complicado gerar um talento novo e malparar. Trazer talentos consolidados facilita para atingir o grande público”, diz Stumpf.
No entanto, se, por um lado, o riso fácil atinge o testemunha com mais força, por outro, a fórmula comercialmente segura deixou pouco espaço para novas ideias. “São pautas antigas, que não ofendem e que ninguém vai vigiar. As pessoas veem para não pensar muito na vida, e no presente há uma urgência de se desligar do outro, da veras que não é lá essas coisas, e rir um pouco”, diz Sadek.
A receita corre o risco de prescrever. É o que diz Marco Dutra, diretor de “Estômago 2”, vencedor do prêmio do júri popular no Festival de Gramado. “A comédia precisa se reinventar. Estamos falando de uma fórmula de dez anos detrás que não se atualizou com os jovens, que são quem mais vai ao cinema hoje e são pessoas difíceis de surpreender”.
Mas a renovação esbarra em outra sombra que vem se impondo sobre o riso. Diante dos cancelamentos promovidos nas redes sociais em anos recentes, muitos criadores temem errar a mão na hora de fazer humor e serem detidos pela sentinela do politicamente correto. “As pessoas têm terror de fazer piada”, diz Stumpf.
Sadek diz concordar. “A pior coisa que você pode fazer para a dramaturgia é não negar a sátira. Millor Fernandes, Chico Anísio, Jô Soares e Dias Gomes eram grandes humoristas que criticavam tudo e todos. Didi é uma comédia pouco elaborada, que precisa subsistir, mas não conseguimos transpor disso”, afirma.
Colaborou Leonardo Sanchez