Nº 1 do Top 50 Spotify Brasil, ‘Baby eu tava na rua da Chuva’ cita revólver famoso nas letras do gênero, escolha que gera debates sobre glamourização da violência e demonização cultural. Os MCs (da esq. p/ dir.) Menor do RV, Oruam, Barca Na Batida e Danone
Montagem/Reprodução/YouTube
Música mais ouvida no Spotify Brasil neste momento, “Baby eu tava na rua da Chuva” mistura elementos de duas vertentes do funk: os chamados proibidão e putaria. A melodia, dos MCs TR e Menor do RV, faz referências fálicas a Glock, uma arma de lume.
Na voz infantil do RV, que tem 13 anos, os versos do refrão citam a revólver nominalmente.
“Baby, eu ‘tava na Rua da Chuva/ de Glock, de radin/ cê me avistou do zero/ chegou com os papin/ achou que eu caio na lábia/ pediu pra sentar e sarrar na glockada.”
Também no Top 50 do Spotify Brasil, “Rolé na Favela de Nave” — de Oruam, com Didi e MCs K9, William e Smith —, é outra filete a mencionar o revólver: “botar a Glock pra dar um rolé (no Multíplice)/ pras piranha ver um volume”.
Não é a primeira vez que músicas do gênero falam da arma austríaca. O objeto também aparece, por exemplo, nos hits:
“Possuidor da Porsche (bom dia princesa)”
“Glockada na cintura”
“Sarra no menor que tá de Glock na cintura”
“Glock camuflada elas se cabo”
“Balança balança a Glock vs. bota pra trovar papum”
“Deixa de Vaga”
“Pegada de Malvado”
“Sento no ponta da Glock”
Mas, finalmente, por que tantas canções de funk citam a revólver? Existem algumas razões para isso suceder.
Por que Glock fissura funkeiros
Xerox das armas
Fabricado em 1979 por Gaston Glock, o revólver começou a ser usado em 1982. Primeiro, pelo tropa austríaco e, logo depois, pelas forças militares dos Estados Unidos.
Feita de polímero, a arma se destacou rapidamente no mercado armamentista. Foi considerada de subida espaço, por sua estrutura, que é resistente à corrosão.
Com o tempo, ela ganhou glória global, sendo vista com glamour por atiradores.
Protótipo Glock 17
Reprodução
Virou um tipo de “Xerox das armas”. Assim porquê a marca americana é sinônimo para “fotocópia”, o termo Glock é usado não só para se referir ao padrão em si, mas também ao próprio noção de revólver. É o que explica Roberto Uchôa, mentor do Fórum Brasiliano de Segurança Pública, policial federalista e responsável do livro “Armas para quem? A procura por armas de lume”.
“Ela se tornou referência”, diz o perito. “Aí começou a desabrochar na cultura pop. Por exemplo, ‘U.S. Marshals – Os Federais’ [1998] tem uma cena em que o personagem manda o outro trocar a revólver dele pela Glock’.”
A arma também está em cenas famosas de filmes porquê “Duro de Matar 2” (1990), “Termo dos Dias” (1999) e títulos das séries “007”, “Exterminador do Horizonte” e “Matrix”.
Cena de ‘Matrix’ (1999)
Reprodução/YouTube
Vocabulário gangsta
Além de lucrar espaço no cinema, ela se fincou no imaginário popular por meio da música.
Na mesma quadra em que seu destaque chegava às telonas — entre os anos de 1990 e 2000 —, games porquê “GTA” (“Grand Theft Auto”) e canções de sucesso mencionavam o padrão.
Foi mal a Glock entrou para o vocabulário do rap americano, sobretudo na vertente gangsta, que aborda questões ligadas ao violação e à vida nos subúrbios dos Estados Unidos.
Tupac em videoclipe de ‘Hit Em Up’
Reprodução/YouTube
Entre as canções com letras do tipo, estão “Hit ‘Em Up”, de Tupac, com Outlawz, “Bring It On”, de Snoop Dog, e “Runnin’”, de Tupac.
Com sucesso mundial, faixas porquê essas acabaram inspirando artistas de outros gêneros.
Décadas de proibidão
Surgido no Rio de Janeiro do final dos anos 1990, a vertente do funk proibidão foi influenciada tanto pelo gangsta quanto pelo rap vernáculo.
Suas obras são cheias de referências explícitas ao contexto violento no qual vivem as favelas brasileiras e ao modo operacional do violação no país.
Cena do videoclipe ‘Glock camuflada elas se cabo’, do MC Barca na Batida
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Uma vez que mostra “Rap Das Armas”, dos MCs Junior e Leonardo, o subgênero já fazia referências a Glock até mesmo antes de a revólver chegar ao Brasil (por vias legais), em 2005. (Vale expressar que, embora a arma tenha significativa circulação no país, nunca ultrapassou o monopólio vernáculo da Taurus.)
Com letras de menção a facções criminosas, tráfico de drogas e, porquê dito, porte de armas, o proibidão vem sendo desde sempre motivo de debates sobre glamourização da violência e demonização cultural.
Funk na mira
Por muitas vezes, discursos que acusam o funk de estimular à violência fizeram o gênero ser tratado com repreensão.
Em 2008, a realização de bailes funk nas favelas cariocas se tornou objectivo das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), que durante anos inviabilizaram os eventos.
Em 2017, um projeto legislativo definia o funk porquê “um violação de saúde pública”. O texto chegou ao Senado, mas foi rejeitado.
Dois anos depois, um levantamento publicado pelo g1 mostrou que, só naquele ano, a Polícia Militar havia feito pelo menos 7,5 milénio operações contra pancadões no estado de São Paulo.
Cena do videoclipe ‘Balança balança a Glock vs. bota pra trovar papum’, do MC Jajau
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Dos versos à verdade
“Tudo isso legalmente é insustentável”, afirma Salah H. Khaled, presidente do Instituto Brasiliano de Criminologia Cultural e professor da Universidade Federalista do Rio Grande. “A liberdade de frase é um recta fundamental.”
“Qualquer hipótese que sustente um vínculo de ordem causal entre expressões artísticas e violência real não tem fundamento. Já tentaram provar isso, mas não se chegou a nenhuma sustentação [da teoria].”
“Isso é uma forma de simplificar a discussão e redirecionar um debate que envolve questões porquê, por exemplo, o chegada a armas de lume. Músicas de arma não matam. Armas matam.”
Cena do videoclipe ‘Filete de Gaza 2’, do MC Ouvido
Reprodução/YouTube
Brasil, um país violento
Salah ressalta que, mesmo assim, essa é uma discussão delicada. Ao contrário de games, por exemplo, o chegada a músicas é muito mais expandido e simples.
Ainda que selos de “teor explícito” (das plataformas digitais) estejam em segmento das faixas com letras desse tipo, todas podem ser facilmente ouvidas por crianças, o que, se desalinhado de conversas pedagógicas, pode deturpar a compreensão do ouvinte do real noção de qualquer arma: magoar e massacrar.
Dados do Monitor da Violência, criado pelo g1 para medir índices nacionais de homicídios, mostram que só no primeiro semestre de 2023 foram quase 110 assassinatos por dia.
O Anuário de Segurança Pública publicado neste ano revela que 76,3% dos assassinatos cometidos no país em 2022 foram cometidos com armas de lume.
Cena do videoclipe ‘Filete de Gaza 2’, do MC Ouvido
Reprodução/YouTube
“A verdade é uma só: a nossa sociedade é extremamente violenta”, afirma Roberto Uchôa. “O que essas músicas estão mostrando é o que a sociedade já vivencia há décadas.”
Atualmente, o Brasil tem quase 2,9 milhões de armas de lume cadastradas na Polícia Federalista em nome de civis. Desses, mais da metade está com os registros em situação irregular.
Em 2023, quase 940 milénio armas de CACs (Caçador, Atirador Esportivo e Colecionador) foram recadastradas posteriormente uma mandamento do governo federalista. Elas foram adquiridas entre 2019 e 2022, período no qual decretos do governo Jair Bolsonaro facilitaram o chegada às armas.
O candidato a presidente pelo PSL, Jair Bolsonaro, faz gesto representando uma arma durante carreata em Ceilândia, no Província Federalista, em foto tirada em 2018
Fernanda Calgaro / G1
“Demonizam tanto o funk por falar essas questões, mas a população elegeu um presidente que fazia sinalzinho de arma em comício”, diz Tamiris Coutinho, pesquisadora do gênero e autora de “Cai de Boca no Meu B#c3t@o: O Funk porquê Potência do Empoderamento Feminino”.
“Eu sei, é complicado uma párvulo trovar sobre Glock. Devemos tomar zelo para não romantizar isso”, afirma ela. “Ao mesmo tempo, se ela tá cantando aquilo, é porque tem chegada [à temática].”
“É uma verdade das periferias. É geral ver gente andando com arma. Seja policial, traficante ou miliciano.”
(Da esq. p/ dir.): Oruam e MC Ryan SP
Reprodução/YouTube
Glock para além da arma
Salah H. Khaled explica que a citação da Glock numa letra não é, necessariamente, referência à arma em si. Pode ser menção a poder, subida social, status, virilidade, masculinidade e falo.
“Numa sociedade do consumo, objetos não são valorizados por aquilo que são, mas sim pelo que representam. É dissemelhante tirar do bolso um celular Xiamoi e tirar um IPhone de última geração.”
“Existem versões da Glock altamente estilizadas”, diz ele. “É uma revólver projetada para ser sexy, interessante.”
Revestimento da música ‘Sento no ponta da Glock’, do DJ Gabriel do Borel e MCs Lucy e Rogê
Reprodução
De vestuário, várias canções do proibidão transformam o revólver num objeto fálico. São casos em que, a partir de metáforas, o subgênero se junta ao funk putaria.
“Eu só conheço uma música que tenha mulher cantando sobre esfregar a arma na rosto de varão. É ‘Glock’, de Muse Maya. Todas as outras são sobre sarrar ou sentar na Glock de qualquer varão”, diz Tamiris.
“É uma extensão do falo, da masculinidade.”
Cá estão alguns versos que seguem a teoria:
“A rosto de tralha com a Glock camuflada/ me viu no beco, ficou com a xota molhada”
(“Glock camuflada elas se cabo”)
“Viu a Glockada na cintura/ novinha sentiu tesão/ viu que os tralha tá com moeda/ deu pra ver pelos cordão”
(“Glockada na Cintura”)
“Vou te apresentar minha Glock de 30 tiro/duvido, pequena, você não permanecer comigo/ Sarrando com a xota no ponta”
(“Pegada de Malvado”)
“Eu sabor quando tu senta potente/ e vem sarrando na minha glock/ que hoje eu vou te furar”
(“Sento no ponta da Glock”)
“Joga a glock na cintura e deixa desabrochar o pentão/ que a mulherada logo marca quesito”
(“Herói ou Vilão”)
MC Menor do RV em videoclipe ‘Baby eu tava na rua da Chuva’
Reprodução/YouTube
Na rua da Chuva
É também o caso do hit “Baby eu tava na rua da Chuva” — do qual refrão está descrito no início desta reportagem.
A obra é um funk de Belo Horizonte que faz interpolação (recurso de criar música a partir de alguma simetria já existente) de “I’m Good (Blue)”, de Bebe Rexha e David Guetta, música que é interpolação de “Blue (Da Ba Dee)”, de Effeiel 65.
A letra faz referências à rua da Chuva, point de muitos bailes funk da capital mineira.
Segundo o MC TR, ele e Menor da VR chegaram a receber críticas pelo uso da termo “Glock”, principalmente por possuir “uma párvulo cantando”.
O funkeiro atribui isso a um preconceito contra o gênero e nega que sua música seja uma glamourização da violência.
O músico diz ainda que, apesar das críticas, ambos cantores ouvem muito mais comentários positivos sobre o hit.
Fonte G1
