Por Que Luiz Gama Olha Afrontoso Para Rego Freitas?

Por que Luiz Gama olha afrontoso para Rego Freitas? – 21/06/2024 – Guia Negro

Celebridades Cultura

Quem cruza o Largo do Arouche, no núcleo de São Paulo, se depara, entre outras homenagens, com o busto de Luiz Gama, jurisperito, jornalista, poeta e principal líder libertador do século 19. O monumento foi o primeiro a homenagear uma pessoa negra na capital paulista e foi instalado ali na dez de 1930 com recursos da comunidade negra, arrecadados por uma campanha do jornal O Progresso, veículo da prelo negra da quadra. A localização é estratégica: ao lado da Ateneu Paulista de Letras, instituição em que Dr. Gama é o patrono da cadeira de número 15, e de frente para a Rua Rego Freitas, para onde olha de forma afrontosa. Mas por quê?

Nossa viagem hoje é no tempo: São Paulo, segunda metade do século 19. A grande metrópole que conhecemos hoje não passava de uma vila. A vida dos murado de 40 milénio habitantes girava em torno da perturbação promovida pelos os estudantes da Faculdade de Recta do Largo de São Francisco, dos negócios dos barões do moca e, é evidente, dos principais debates políticos da quadra: o término da reino e a extermínio da escravatura. Ou, nas palavras do Dr. Luiz Gama, “uma terreno sem reis e sem escravos”: projeto político pelo qual ele dedicou sua vida, que celebramos hoje, dia 21 de junho, data de seu promanação, em 1830 em Salvador.

A história toda é uma biografia de cinema (Literalmente! Assistam ao filme Doutor Gama, de Jefferson De) e não caberia em um item. Mas o roupa é que posteriormente aprender a ler e ortografar aos 17 anos, o jovem Luiz Gama, que havia nascido livre e foi vendido uma vez que escravizado pelo próprio pai aos 10 anos de idade, reuniu documentos que comprovaram a sua quesito e reconquistou a própria liberdade.

Essa foi a primeira das 500 libertações que conseguiria nos tribunais ao longo da vida, atuando uma vez que “rábula”, um termo pejorativo utilizado na quadra para se referir aos advogados que tinham uma licença para defender em primeira instância, ainda que não fossem formados em Recta, uma vez que era o caso de Luiz Gama. Mesmo assim, ele se tornou o maior técnico na legislação sobre escravidão e alforrias e nas “causas de liberdade”. E foi aí que Luiz Gama e Rego Freitas se tornaram grandes inimigos.

Os embates entre os dois se davam no mundo jurídico e nas páginas da prelo. A cada sentença injustamente indeferida, a indignação de Luiz Gama se transformava em palavras irônicas e mordazes, que expunham a preterição e a “incompetência” do juiz – “um pobre de espírito, para quem Deus aparelhou o reino do firmamento”. Fidedigno réplica do pacto narcísico da branquitude (leiam Cida Bento, também colunista da Folha!), Rego Freitas negava direitos à população negra para prometer os privilégios dos brancos.

O auge da contenda se deu no ano de 1869. Gama publicou um “inqualificável despacho” do “untuoso” juiz sobre um caso de grande repercussão na quadra – o do africano Jacinto – e o respondeu com infalível argumentação jurídica, mas também com ira e trote: “Consinta o imponente juiz (…) que eu lhe dê uma proveitosa prelecção de recta, para que não continue a enxovalhar em público o pergaminho de bacharel que foi-lhe conferido pela mais distinta das faculdades jurídicas do Predomínio”. Resultado: perseguição e punição de Luiz Gama, com sua destituição do serviço público, num incidente flagrante de agravo de poder e interferência entre os poderes.

Gama foi um dos pouco líderes negros que não foi assassinado. Ele morreu em 1882 de complicações causadas pela diabetes e não viu a extermínio, que só ocorreu em 1888. Sua morte virou notícia e murado de 4 milénio pessoas – murado de 10% da população paulistana à quadra – acompanharam seu cortejo sepulcral do Brás, onde vivia, até o Cemitério da Consolação, onde foi sepultado. Além do busto no Arouche, ganhou o título de herói pátrio, inscrito no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, título de Doutor Honoris Motivo pela Universidade de São Paulo (USP), além de diplomas póstumos de jornalista e jurisperito e é considerado precursor da advocacia pro bono.

Simbolicamente, mais de um século depois, Gama e Freitas continuam se enfrentando. Na Rua Rego Freitas, que vai da Rua da Consolação até o Largo do Arouche – homenageando o juiz que era possessor de terras naquela região – fica o Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, que em 2018, por meio da sua Percentagem de Jornalistas pela Paridade Racial (Cojira), da qual fazemos segmento, ganhou uma placa e uma foto em reconhecimento à influência de Gama para a categoria.

E, não por possibilidade, a estátua do libertador foi instalada no Largo do Arouche, mas direcionando o olhar arrogante de Luiz Gama para a Rua Rego Freitas, uma vez que quem questiona a homenagem a um escravocrata com um nome de via. Uma sufocação no pretérito, no presente e no horizonte. Pelo dia de hoje e sempre, viva o Dr. Luiz Gama!

Cinthia Gomes é jornalista, mestra pela Escola de Comunicações e Artes da USP, integrante da Percentagem de Jornalistas pela Paridade Racial e da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo


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Folha

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