Um levantamento publicado neste jornal apontou que a geração Z, a que pertenço, é a que mais ouve Madonna. A reportagem segmento de dados da plataforma Chartmetric, que acompanha estatísticas das principais plataformas digitais, e da reparo do TikTok, onde “Material Girl” se tornou a música mais ouvida há tapume de dois anos.
Os dados apontam um interesse renovado pela música de Madonna, e até pela figura da cantora, muito recebida na rede chinesa, onde publica vídeos de caras e bocas e mostra os bastidores do seu sucesso. Acredito que seja equivocado, no entanto, confrontar esse engajamento com o furor de tempos detrás.
Para gerações anteriores, Madonna foi a musa definitiva, o símbolo maior de tempos de mudança, além de um fenômeno mercantil meteórico. Para a minha geração, a cantora não tem a mesma centralidade. Quem vai além do TikTok e se proeza a escutar além de seus hits se encanta com uma ousadia que pouco envelheceu. Mas o espaço que ela ganhou entre os novinhos diz mais reverência ao consumo de música atual.
Alguns dados ajudam a entender a questão. Em uma pesquisa de 2021 feitas com americanos pelos laboratórios Dolby, empresa especializada em compressão e reprodução de áudio, quase metade dos entrevistados afirmaram ter desvelado recentemente alguma música de mais de dez anos detrás. Entre a geração Z, a porcentagem subiu para 70%.
O levantamento atesta um movimento que é muito simples para quem usa o TikTok diariamente. Há uma nostalgia generalizada, em que referências dos anos 1980 voltam com tudo e os anos 2000 começam a ser recuperados porquê estética popular. Dessa forma, a rede social virou uma grande escavadora de arquivos, onde são recuperadas pérolas de outras eras.
Exemplos não faltam. Em 2020, os usuários do TikTok, com seu teor que quase sempre acaba escoando para o Instagram, recuperaram faixas de um álbum de 2008 do grupo canadense Mother Mother, “O My Heart”. Assim, a filarmónica conquistou um sucesso que nunca teve antes. Em outubro, vem para o Brasil, durante sua turnê pela América Latina.
A fita “Rasputin”, do grupo Boney M., sucesso dos anos 1970 e 1980, é outra que foi recuperada na plataforma e serviu de trilha para jovens de todos os gêneros que estavam sedentos por exibir seus corpos. Os sucessos românticos “Just the Two of Us”, dos músicos Grover Washington e Bill Withers, e “It Must Have Been Love”, do Roxette, são outros hits que explodiram na rede. A mesma coisa aconteceu com “Every Body Wants to Rule the World”, de 1985, do Tears for Fears.
Isso não significa que Madonna seja só mais um nome em uma lista de artistas renovados. Pergunte a alguém mais novo quem foi Grover Washington ou quais eram os integrantes da Boney M. e poucos saberão responder. Pergunte quem é Madonna, e poucos não saberão.
Madonna é atual por ao menos dois motivos. Primeiro, porque ajudou a fabricar o protótipo de diva pop, que hoje passa por transformações e abre espaço para novas propostas, mas ainda mantém a origem herdada da cantora. Depois, porque Madonna se mantém irreverente, e o mundo continua momice.
Sempre leio com notório ceticismo reportagens sobre a suposta repulsa generalizada a sexo da geração Z, que, suspeito, partem de um entendimento restritivo do que é sexo. A pulsão erótica não é menor entre os nossos e, quando a cantora diz que um companheiro a faz sentir porquê uma virgem tocada pela primeira vez, conversa com o libido latente de novos ouvintes.
Em tempos permeados pelo conservadorismo religioso, a cantora também tem o que expor. Se com “Montero”, de 2021, e “J Christ”, deste ano, o cantor Lil Nas X une referências religiosas a elementos sexuais e jocosos, um tanto parecido com o que Lady Gaga fez com “Judas”, de 2011, Madonna em 1989 já chocava o bom cidadão com a sugestiva “Like a Prayer”.
“Quando você labareda meu nome/ é porquê uma pequena prece/ estou de joelhos/ quero te levar até lá”, ela cantava, enquanto incendiava cruzes e beijava os pés de um Jesus preto para os Estados Unidos ainda mais racistas da quadra.
Lil Nas X se defendeu no X da criminação de estar tentando ser Madonna, dizendo que não se importa com o que elas fizeram e só quer fazer a arte dele. A verdade é que Madonna não criou a tradição de traçar paralelos entre religião e sexo, ainda que tenha se tornado uma referência para isso na música.
Lembro de uma discussão que tinha com a minha mãe, quando mais jovem, em torno da clássica polêmica entre “Express Yourself” e “Born this Way”. Ela, a mesma que me apresentou Lady Gaga e seus clipes camp e por vezes homoeróticos, considerava a fita da novidade diva uma transcrição da cantiga antiga. As próprias cantoras trocaram rusgas por razão das comparações.
Conflitos porquê esses rendem entretenimento para os que gostam de seguir os bastidores das celebridades, mas pouco importam. Ao contrário de Madonna, que manteve sua vitalidade, discussões geracionais do tipo “os nossos eram melhores” carregam ranço de velharia. Se os padrões de consumo de música mostram um tanto, é que, no sabor dos novos públicos, há espaço para a convívio pacífica entre ícones de diferentes épocas.