Em Santos há um aquário municipal e eu levava minha filha muito lá. Em uma das vezes, me lembro de ver uma arraia nadando e me distraí com a venustidade daquele nascido. Ela deslizava movendo suas nadadeiras e era a preferida das pessoas que estavam tirando fotos.
Fui embora e fiquei refletindo sobre o dilema daquela arraia, que nadava lindamente, mas ainda estava presa às dimensões do aquário. O incidente me levou a uma metáfora sobre a situação das mulheres. As mulheres brancas nadam lindamente num aquário muito grande, do tamanho do aquário da arraia. Nós, mulheres negras, indígenas, estamos em um aquário muito pequeno dentro desse mesmo aquário. Somos também arraias com nados belos, mas apertadas pela dimensão do aquário menor.
A arraia do aquário grande olha para o aquário menor e se compraz por “ser livre”, por mais que ela também esteja reduzida às dimensões do viveiro. Portanto, em vez de olhar para suas semelhantes e pensar “vamos juntas quebrar esses aquários para disputar o oceano”, ela quer aumentar o aquário dela, diminuindo o meu, achando que ela é livre, mas sem entender que também está presa.
Penso que essa metáfora nos ajuda a refletir sobre formas de interligar as nossas lutas numa sociedade que precisa de mudanças. Eu fico pensando sobre essas questões no seguinte sentido: que sociedade a gente quer para nós? Porque muitas vezes se entende o feminismo porquê um movimento que está discutindo a sociedade somente pela perspectiva de gênero. Porquê feminista negra, todavia, acredito que não há porquê pensar gênero sem discutir sexualidade, raça, classe et cetera.
Nos tempos atuais, há uma compreensão de que a mulher empoderada é aquela independente financeiramente. E, obviamente, uma das nossas formas de liberdade é o nosso fortalecimento econômico. Mas quero refletir sobre os limites dessa compreensão, pois crer que sua veras é a veras de todas faz com que se reproduzam opressões contra mulheres que partem de lugares marcados por mais desigualdades. E mesmo as mulheres que ganham muito, têm um smartphone de última geração, uma geladeira com inúmeras funcionalidades, experimentam a partilha sexual do trabalho.
A mulher, muitas vezes, está obrigada a cozinhar, fazer a compra no supermercado para abastecer essa mesma geladeira, ela é julgada por ser uma mãe que trabalha fora e tem uma curso ou julgada se não quiser praticar a maternidade. São inúmeros desafios postos para a mulher no mercado de trabalho, mesmo para aquelas que auferem um ótimo salário e posição de poder.
Os mecanismos de vexação se atualizam e confundem muitas de nós. Alguns comerciais na televisão mostram mulheres felizes, maquiadas e magras, limpando suas casas com equipamentos de última geração, criando seus filhos maravilhosamente muito e esperando o marido com um sorriso no rosto.
A gente sabe que isso é uma ilusão mercantil, porquê também é uma ilusão fazer com que se acredite que o corpo da “mulher real” é sarado e está dentro do padrão de venustidade construído.
A vida cotidiana não é uma bela propaganda de televisão. Enquanto há mulheres estafadas, no trabalho ou porquê dona de moradia, acumulando inúmeras funções, tem vários homens sendo poupados de compartilhar as tarefas. Acumulando tarefas, a gente não tem tempo para zero, nem para olharmos para nós mesmas. Sermos empoderadas é pensarmos juntas porquê gerar formas de enfrentamento a essas opressões e criarmos oportunidades para outras mulheres que não tiveram as oportunidades que nós tivemos.
Uma CEO pode ser uma mulher lésbica, mas que não pode assumir publicamente seus afetos, pois isso pode simbolizar uma crise em seu função. Uma CEO pode ser casada, mas enfrentar uma série de crises pelo vestimenta de o varão não admitir que ela ocupe uma posição de poder. Enfim, nossas trajetórias individuais de sucesso profissional não fazem vanescer o machismo. Ele continua aí, atingindo-nos enquanto grupo e, a partir de um grupo, deve ser combatido.
Falando a partir de um lugar da mulher negra, mesmo no Brasil, país no qual 54% da população se autodeclara porquê negra, vejo-me em jacente solidão institucional, porquê já escrevi nesta Folha. Mulheres porquê eu estão na faxina ou servindo moca. Certamente não são CEOs. Em universal, não se sabe nem o nome delas ou quais histórias estão por trás daquela pele escura. Há uma naturalização dos espaços que elas ocupam e os seus sonhos pouco importam.
Para aquelas que, com muita dificuldade, conseguiram romper algumas barreiras, há a tristeza institucionalizada de olhar para o lado e ver poucas ou quase nenhuma porquê elas. Quem não vem desse lugar social tem o privilégio de ser distraído ou de expressar que nem sequer percebeu ou notou.
Que possamos destruir os aquários e parar de temer o mar.
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