O olhar é de quem não tem zero a temer. Ele encara o testemunha de forma altiva, porquê alguém que reivindica para si nobreza e prestígio. Ao lado do retratado, vemos canetas tinteiros e um papel preenchido com uma escrita rebuscada, elementos que conferem ares intelectuais ao cenário.
Na pintura, o jornalista Silvino de Almeida Brito parece recusar o lugar de subserviência talhado a negros no século 19. Não à toa, o retrato feito por Pedro Américo ocupa posição de destaque na mostra “Pretagonismos”, em papeleta na galeria BNDES, no Rio de Janeiro.
A exposição traz 105 obras divididas em cinco núcleos temáticos. O Museu de Belas Artes do Rio cedeu segmento dos trabalhos. O restante foi produzido por artistas contemporâneos, porquê Panmela Castro, Michel Onguer e Brendon Reis.
Um dos objetivos da mostra é jogar luz sobre a produção desses profissionais. Em razão do racismo, eles costumam trilhar um caminho tortuoso em direção ao reconhecimento. Exemplo disso é Maria Lídia Magliani, artista que se faz presente na exposição com a gravura expressionista “Protótipo 19”.
Primeira mulher negra a se formar na escola de artes da UFRGS, a Universidade Federalista do Rio Grande do Sul, ela era uma profissional multifacetada. Foi pintora, figurinista, cenógrafa e ilustradora.
Suas obras estão no pilha de instituições porquê Museu Afro Brasil, Pinacoteca de São Paulo e Museu de Arte Moderna da capital paulista. “Apesar disso, morreu à míngua num quarto de pensão no núcleo do Rio”, diz Cláudia Rocha, museóloga do Museu Vernáculo de Belas Artes e uma das quatro curadoras da exposição. “É importante que a gente mostre que essas pessoas existiram e que suas obras podem dialogar com os mais diferentes públicos.”
Além de dar visibilidade a esses artistas, a mostra procura refletir sobre o modo porquê negros foram retratados nas artes plásticas ao longo dos anos.
Nas representações tradicionais, feitas por nomes porquê Debret e Alberto Henschel, é generalidade vê-los subjugados pela visão dos artistas e pela violência escravocrata. Por vezes, essa dinâmica de poder se traduz no olhar dos retratados. Pessoas escravizadas frequentemente não encaravam o testemunha, mantendo os olhos baixos ou alheios à cena.
Ser observado pressupõe ser escopo de escrutínio, ou seja, ser reduzido à quesito de objeto. Observar, por outro lado, pode ser entendido porquê um tirocínio de autonomia e liberdade. É ocupar o lugar de agente das ações.
Por esse motivo, a pintura de Silvino de Almeida Brito se impõe. Não só pela atmosfera de fidalguia que paira sobre a obra, mas também porque ele encara de volta quem o observa. Ambos estão no mesmo nível.
A existência dessa obra, inclusive, é um ponto fora da curva. Enfim, não era generalidade que pintores retratassem pessoas negras no século 19. “Esse é um dos poucos retratos desse período no pilha do museu em que o preto está representado”, diz Rocha, acrescentando que retratos conferem imortalidade símbolo àqueles que se deixam registrar.
“E quem poderia ocupar essa imortalidade? Um escravizado não poderia, já que não tinha condições financeiras para contratar um pintor porquê Pedro Américo.”
Um dos pioneiros da chamada prelo negra, Silvino rompeu com essa invisibilidade ao ocupar proeminência porquê jornalista e tipógrafo.
Por esse motivo, seu retrato está num núcleo expositivo intitulado “Nas Brechas das Representações”. Nessa seção, há figuras que, a exemplo do jornalista, fizeram frente à marginalização e ganharam visibilidade em telas e fotografias.
É o caso do navegante Simão, cabo-verdiano que trabalhou na armada imperial e ficou famoso posteriormente salvar 13 pessoas durante um naufrágio, em 1853. Homenageado por dom Pedro 2º, ele foi retratado em uma pintura de José Correia de Lima.
Há ainda imagens do fotógrafo português Felipe Augusto Fidanza, que registrou escravizados no século 19. As obras, porém, sofreram intervenções do artista paraense PV Dias.
Intitulada “Rasurando Fidanza”, a série é um tirocínio de subversão estética no qual ele desenhou câmeras, drones e refletores multicoloridos nas fotografias.
Há ainda um elemento importante, mas que passa quase despercebido. Nas obras, o artista pintou sapatos nos pés dos escravizados. A mediação não é fortuita. Andejar descalço pelas ruas era sinal de que a pessoa estava sob o tirania da escravidão.
“Ele tenta dar esse lugar de legitimidade e de controle de suas próprias histórias para essas pessoas. É uma forma de habilitá-las a terem uma postura digna”, diz Rocha.
Outra subversão foi promovida pelo pintor Firmino Monteiro, responsável da tela “Vercingetorix Diante de Júlio César”, de 1886. Exposta pela primeira vez, a pintura retrata o momento que antecede a realização do líder gaulês tomado pelas forças romanas em 52 a.C.
Na obra, ele está algemado em uma masmorra diante de seus carrascos. O envolvente lúgubre parece prenunciar o rumo que o aguarda. Apesar disso, mantém a postura ereta e a sentença insubmissa. Na tela de Firmino Monteiro, o guerreiro foi vencido, mas não parece derrotado.
É uma representação muito dissemelhante do modo porquê Vercingetorix costuma ser retratado. No século 19, o galicismo Lionel Royer fez a pintura mais conhecida do líder gaulês. Na obra, ele aparece rendido em cima de um cavalo, entregando suas armas ao tropa inimigo. Não há qualquer honra ou honra, características que Monteiro tentou restaurar em sua tela.
“A historicidade de Vercingetorix, recluso e escravizado pelo Poderio Romano, dialoga diretamente com a escravização dos negros no Brasil”, diz Reginaldo Tobias de Oliveira, professor de história que também assina a curadoria da exposição.
Ele diz que a obra de Monteiro, um varão preto, aborda de forma subjacente a vexação contra grupos racializados.
“É aquela coisa: acusaram muito o Machado de Assis de não falar sobre racismo. Mas ele fala, é só você saber ler nas entrelinhas”, diz Oliveira.”É a mesma coisa nessa tela. Firmino Monteiro está falando de racismo e da quesito do preto no Brasil.”
O próprio Machado de Assis teceu comentários elogiosos sobre o artista na revista A Estação, exaltando a sua tenacidade e crédito. Uma vez que se resumisse o objetivo da mostra, uma das frases do texto foi pintada em letras pretas na ingresso da sala expositiva. “Nós amamos os homens dessa temperatura”, escreveu o noticiarista, em 1882. “Não desejamos outra coisa do que vê-los ilustres e recompensados.”