Trovoadas anunciam a entrada de Robert Smith no palco do Primavera Sound. Os holofotes mimetizam raios, seus clarões, e o gelo seco, as brumas de uma Inglaterra distante que habita em nós. A imitação é necessária. A noite de São Paulo é quente.
As sensações chegam antes da música. Smith se diz sozinho, ainda que mobilize multidões há quatro décadas. O show do The Cure, a principal atração do festival, se inicia com “Alone”, uma canção inédita, incluída no álbum a ser lançado no ano que vem, talvez o último da banda britânica.
Está cheio. O vocalista se posta diante um mar de gente. As pessoas vestem roupas pretas, mas poucas pintam os olhos e deixam o batom borrado na boca. Há um climinha de azaração no ar.
Mirando a massa, Smith se comporta como o “Caminhante Sobre o Mar de Névoa”. Pintada no século 19, a tela do alemão Caspar David Friedrich mostra o homem romântico, solitário, contemplando a natureza, uma extensão de si.
Do mesmo modo, o gênero pós-punk, que o The Cure ajudou a delimitar, nos anos 1980, vive em paisagens sonoras.
A introdução de “Pictures of You”, do discaço “Disintegration”, lançado em 1989, é executada pelo teclado de Roger O’Donnell, sintetizando o amor que só vive em imagens.
A palavra cantada só vem depois, para destruir a fantasia. “Eu olhei tanto tempo para essas suas fotografias/ que eu quase achei que elas eram reais”, diz a letra.
O sintetizador amansa a guitarra de Reeves Gabrels, o baixo de Simon Gallup e a bateria de Jason Cooper. Com o instrumento, a melodia cria uma ambiência sonora. A melancolia do The Cure substitui a raiva do The Clash.
Os fotogramas se sucedem, o roteiro do show faz um filme. “And Nothing Is Forever” anuncia a impermanência da vida; “Endsong” tematiza a finitude. São as duas outras inéditas da banda apresentadas no show.
A exemplo de “Alone”, as novas canções mantêm a coesão sonora do grupo, evitando as fórmulas do hit, outrora exploradas. A sequência é formada por “Fascination Street”, “A Night Like This” e “Push”, do álbum “The Head On the Door”, de 1985, uma canção quase toda instrumental.
As passagens sem letra mantêm o apelo popular da apresentação. São alicerçadas em poucos acordes, como é próprio do rock, o que origina melodias cantáveis. Enfim, a massa delira, com o par de hits “In Between Days” e “Just Like Heaven”.
Os trevosos uivam, urram, ululam ao luar. Os dois hits têm melodias alegres e letras trágicas.
Se a indústria cultural faz dinheiro com a nostalgia alheia, o The Cure mostra que não vive no passado, mesmo com tantas formações ao longo do tempo.
Com frequência, seus admiradores são acusados de sofrer de uma adolescência tardia. Mas o 13º show da banda no Brasil mobiliza velhos e jovens. Nunca é tarde para ser triste, é certo. E, depois, a memória está fora do tempo. O canto abafado de Smith ainda é o mesmo.
Soando em Interlagos, sua voz alcança as festas de apartamento, as férias de verão, as rádios, que transmitem os hits “Friday I’m In Love”, “Close To Me” e “Boys Don’t Cry”, a sequência final do show.
O visual gótico que dita a moda em Interlagos é a representação dos poemas do triunvirato Lord Byron, P.B. Shelley, John Keats, o autor de “Ode Sobre a Melancolia”.
“Mas se acaso o veneno da melancolia/ cair do céu,/ chuva de nuvens que se espalha/ nas flores e as reflora ao som da chuva fria, e apaga os verdes montes do abril da mortalha,/ Purga, então, o amargor numa rosa aurora.”
O poema fala da natureza, aquela extensão do homem romântico, e ecoa “From The Edge of the deep Green Sea”, canção da obra-prima “Wish”, lançada há mais de 30 anos, também presente no show. Reeves radicaliza na guitarra. O desespero aumenta.
Em vez dos “verdes montes”, o amor impossível está no mar verde da música. Em todas as artes, a beleza gótica tem uma origem comum: a idealização, o princípio da arte romântica.
No Primavera Sound, o The Cure vai além de um show de sucessos. O roteiro de 28 canções faz um carnaval para os desesperados. A banda mostra que o rock é uma anomalia na indústria contemporânea, porque seu sucesso comercial não prescinde do pensamento.
Smith faz a multidão ecoar poetões do século 19. A música ainda é o refúgio do homem romântico. Uma terra sem promessas.
Entre o fim do show e a primeira sequência de bis, a plateia demonstrou estar um tanto desanimada, sem reagir ao espetáculo que acabara de acontecer. De volta ao palco, Smith balbuciou palavras incognoscíveis e seguiu a longa jornada dentro da noite, rumando para as duas horas de show.